“Aviação não pode ser exceção para uma recuperação económica ambientalmente sustentável”, diz ZERO
Na Europa, entre as companhias aéreas que mais ajudas dos Estados receberam estão as maiores emissoras de CO2 no período pré-pandemia, revelam dados oficiais reunidos pela primeira vez. Em concreto, lê-se no comunicado da ZERO (Associação Sistema Terrestre Sustentável), “a Lufthansa, a British Airways e a Air France, cimeiras nas ajudas, são as três mais poluentes”. Já a “TAP é a décima mais poluente, e a oitava maior beneficiária de apoios até ao momento”, precisa o comunicado.
Estes dados, respeitantes às emissões totais das companhias, incluindo voos intra- e extra-europeus, foram obtidos e compilados pela Federação Europeia de Transportes e Ambiente (T&E), que a ZERO integra, e a Associação Carbon Market Watch, sendo tornados públicos numa altura em que faz um ano que a Comissão Europeia aprovou os resgates às companhias no âmbito da pandemia de Covid-19: “Estes dados põem a nu o peso que as emissões referentes aos voos de longo curso têm nas companhias”, alerta a associação ambiental.
Após 12 meses de ajudas à aviação, a ZERO constata que “um terço do total foi para as três companhias mais poluentes, o que deve levar os Governos a repensar a estratégia, alinhando-a com os objetivos do Pacto Ecológico Europeu, de forma a tornar o setor menos insustentável do ponto de vista ambiental”. Entre as formas de o conseguir está a “taxação de todas as emissões da aviação”, pois as companhias estão “isentas das taxas europeias sobre o carbono nos voos que entram e saem da Europa”, diz a ZERO. De acordo com o comunicado, “as companhias Lufthansa, British Airways e Air France têm completamente isentas de taxas 77, 86 e 83% das suas emissões, respetivamente”. Já a TAP tem “62% das suas emissões não reguladas”, lê-se na nota da ZERO.
No próximo mês de junho, segundo a associação ambiental, a Comissão Europeia irá pronunciar-se sobre “se os voos extra-europeus passarão a ser abrangidos pelo Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE)” e, irá, igualmente, “propor uma lei que obrigará as companhias a começar a usar combustíveis menos poluentes, como o querosene sintético, produzido a partir de hidrogénio verde e de carbono capturado do ar”.
De acordo com a ZERO, a União Europeia (UE) em 2008 fez “pressão para que as emissões dos voos de longo curso fossem incluídas no CELE, mas isso acabou por não acontecer para não haver sobreposição com o então prospetivo mecanismo de controlo de emissões das Nações Unidas, o CORSIA”. Contudo, um estudo da Comissão Europeia publicado recentemente concluiu que o CORSIA pode “minar os esforços climáticos” da UE e “provavelmente não mitigará de forma significativa” o impacto climático das viagens aéreas. A ZERO e os seus parceiros de consórcio no estudo entendem que “o CORSIA é uma forma de o setor poder continuar num regime de business as usual”, pelo que “apelam a que as instituições da UE não cedam às pressões anti CELE por parte da indústria”. Pelo contrário, “as isenções fiscais e a atribuição de licenças gratuitas à aviação devem acabar, algo incompatível com o CORSIA”, alerta.
1.200 milhões de euros de ajudas de Estado à TAP sem qualquer condição ambiental
Num mundo em emergência climática, a ZERO reclama que “os cidadãos não podem continuar a pactuar com cheques em branco, de nenhuma espécie e especialmente a indústrias poluentes”, como a aviação: “Em troca da ajuda dos contribuintes, a aviação tem de iniciar o seu percurso em direção à descarbonização, com as ajudas de Estado subordinadas a esta condicionalidade”.
A aviação foi fortemente afetada pela redução do tráfego aéreo resultante da pandemia, com dezenas de companhias aéreas em risco de falência. Por toda a Europa, lembra a ZERO, as companhias têm recorrido aos governos para ajudas desde a primavera de 2020, as quais atingem já mais de “37 mil milhões de euros”. No quadro europeu de resgates, “apenas à Air France e à Austrian Airlines foram impostas condições ambientais pelos respetivos governos, embora tíbias”. No caso da TAP, segundo a associação ambiental, “as ajudas foram de 1.200 milhões de euros, as quais deverão crescer até 2021, perfazendo, se não houver necessidades adicionais, 3.000 milhões de euros nessa altura. Todo este montante não depende do cumprimento de quaisquer condições ambientais”.
Depois de uma melhoria temporária da procura por viagens aéreas no passado verão, a segunda e a terceira ondas da Covid-19 neste outono e inverno levaram a situação financeira da aviação a agravar-se ainda mais, com uma “nova onda de apoios a companhias no valor de 7 mil milhões de euros”, incluindo a companhias já resgatadas anteriormente: “Estas ajudas são possíveis no âmbito de um quadro temporário criado especificamente para o efeito pela Comissão Europeia, que permite os Estados Membros ajudarem empresas no contexto da Covid-19”, refere o comunicado.
Esta soma astronómica de dinheiro público que é canalizado para a aviação traz “sérios prejuízos para o ambiente e para a sociedade”, alerta a ZERO, lembrando que “a emissões da aviação tinham crescido cerca de 28% nos seis anos anteriores à pandemia, devendo notar-se que nas alterações climáticas induzidas pela aviação o efeito direto do CO2 é apenas cerca de um terço do efeito total”. Isto “torna a aviação num dos mais importantes responsáveis crescentes pela emergência climática”, prevendo-se que “o seu impacto no clima cresça entre duas a três vezes até 2050”, refere o comunicado.
Por outro lado, precisa o comunicado da ZERO, a aviação é “paradigmática” no que concerne à desigualdade social existente nas alterações ao clima: “1% da população mundial é responsável por metade do impacto climático da aviação, o que levanta a questão sobre a justiça social dos resgates à aviação”. Em essência, “os mais pobres da sociedade são chamados a contribuir para salvar uma indústria da qual só os mais ricos tiram partido, e que ainda por cima degrada o clima e ambiente de todos”. Por isso a ZERO entende que “salvar a aviação sem requisitos ambientais é socialmente injusto”.
Algumas das companhias aéreas salvas já estavam em dificuldades antes da pandemia, como a TAP e a Alitalia: “O apoio a estas companhias agrava a situação, pois a pandemia é usada como desculpa na sustentação de um apoio governamental que é economicamente ineficiente e que viola as leis europeias da concorrência”, alerta.
Como pode a aviação recuperar de forma ambientalmente sustentável
Numa altura em que os recursos para fazer face aos desafios causados pela pandemia são escassos, e em que o dinheiro dos contribuintes tem de ser criteriosamente bem administrado, importa perguntar se usá-lo para salvar companhias aéreas se enquadra nesses critérios, e em que moldes. “Não há companhias aéreas, por mais estratégicas que possam ser para um país, demasiado importantes para falir”, diz a ZERO, considerando que o importante é “considerar os serviços que assegura, e os trabalhadores que emprega”. É nesta base que os resgates às companhias devem ser encarados, permitindo colocar “três questões-chave” cujas respostas permitem “identificar quais os resgates necessários e sustentáveis de empreender”, refere o comunicado.
- Primeira questão: Apoiar uma companhia aérea é a forma mais eficaz de assegurar os seus serviços e de ajudar os seus trabalhadores? Há alternativas?
Salvar uma companhia aérea deve ter como objetivo evitar grandes prejuízos na economia, proteger os trabalhadores e assegurar serviços estrategicamente importantes. As ajudas devem ser ponderadas fazendo uma análise custo-benefício entre as alternativas, especialmente se a companhia já era deficitária anteriormente, como a TAP. Essa análise, que no caso da companhia portuguesa não aconteceu, deve ser transparente nos critérios, e sujeita a debate público antes de ser tomada uma decisão. Os vazios de mercado quando surgem são preenchidos pelo próprio mercado, normalmente de forma mais eficiente, e os trabalhadores podem ser reconvertidos. Os apoios não devem ter como destino companhias cujo modelo de negócio assente em passagens aéreas mais baratas, que aumentem os salários dos seus executivos os lhes atribuam prémios, ou que aumentem a remuneração dos acionistas.
- Segunda questão: O apoio depende do cumprimento de requisitos ambientais?
A ajuda deve ser temporária, recuperável e prever a diminuição da atividade da companhia se no período pós-pandemia a procura por transporte aéreo se mantiver abaixo do período pré-pandemia. Como princípio geral, a companhia deve comprometer-se a contribuir para o combate às alterações climáticas com base em critérios científicos, através dos seus investimentos ou das suas atividades enquanto grupo de pressão, adotando o objetivo da neutralidade climática até 2050, incluindo os efeitos no clima não diretos do CO2. Deve ainda comprometer-se a um pagamento e cobrança de impostos que seja consentâneo com esta estratégia.
No caso da ajuda à TAP, a ZERO é da opinião que o governo deveria fazer depender o apoio do abandono progressivo da ponte aérea Lisboa-Porto por parte da companhia, tornando-a apenas possível em períodos em que a oferta ferroviária não consiga responder à procura, e o mesmo para a ponte aérea Lisboa-Madrid, no âmbito do futuro comboio de alta-velocidade Lisboa-Madrid e nas mesmas condições.
- Terceira questão: Existe uma estratégia governamental para a descarbonização da aviação?
As companhias só conseguirão cumprir os requisitos ambientais de que as ajudas devem depender se houver políticas públicas apropriadas para esse efeito. Os governos devem pois adotar planos estratégicos para a descarbonização da aviação, os quais devem incluir: apoios à ciência e indústria na área da produção de combustíveis sintéticos; reforma do Comércio Europeu de Licenças de Emissão; inclusão de todas as emissões da aviação nos planos nacionais de energia e clima (PNEC) e, no caso nacional, também no Roteiro Nacional para a Neutralidade Carbónica (RNC2050); imposto sobre o combustível aéreo; e introdução de uma taxa aérea nacional.
Finalmente, a ZERO e os seus parceiros consideram que as regras para os auxílios de Estado no âmbito da pandemia de Covid-19 devem ser revistas pela Comissão Europeia, restringindo o estado de exceção que permite ajudas sem contrapartidas, e limitando-o a dezembro de 2021. A ZERO entende que é necessária “mais transparência em todos estes processos para que a sociedade civil possa adequadamente escrutinar a concessão de auxílios estatais”, como é seu direito: “A pandemia mostrou que é essencial um planeamento antecipado por parte dos governos – use-se essa lição no auxílio às companhias aéreas”, precisa a associação.