A Assembleia da República, segundo um comunicado enviado pela Sociedade Portuguesa do Estudo das Aves (SPEA), vai discutir no próximo dia 10 (quinta-feira), duas propostas de projeto de Lei, submetidas pelo Partido Ecologista Os Verdes (Projeto de Lei n.º 885/XIII/3.ª) e pelo PAN – Pessoas, Animais e Natureza (Projeto de Lei n.º 1056/XIII/4.ª), no sentido de proibir a comercialização e uso em Portugal de medicamentos veterinários que utilizem na sua formulação o diclofenac. Caso esta substância, à qual existem alternativas seguras, seja autorizada e utilizada em Portugal, terá um impacto potencialmente devastador em várias espécies protegidas de aves necrófagas e também nos ecossistemas onde desempenham um importante papel de controlo de doenças.
O diclofenac, que na pecuária é usado essencialmente como anti-inflamatório e analgésico, “foi responsável pelo declínio dramático e abrupto dos abutres do sub-continente Indiano, que quase os levou à extinção”, lê-se no comunicado. Em Portugal, a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) está atualmente a avaliar um pedido de autorização de comercialização de um medicamento veterinário para uso pecuário contendo diclofenac.
As Organizações Não-Governamentais de Ambiente (ONGA) portuguesas consideram que, face ao melhor conhecimento científico existente, e respeitando o princípio da precaução, o pedido de comercialização não pode ser aprovado, e a comercialização e uso destes medicamentos deve ser definitivamente proibida, evitando o consumar de um risco real, iminente e crítico para a conservação de várias espécies protegidas em Portugal. De salientar, ainda, a existência de várias alternativas eficazes a este fármaco que têm muito menor impacto nas aves, pelo que o tratamento dos animais domésticos é perfeitamente possível sem recorrer ao uso do diclofenac e pôr em risco os ecossistemas nacionais.
Desde 2014 que ONGA nacionais e internacionais têm vindo a alertar as autoridades competentes para os possíveis impactos deste medicamento sobre as aves necrófagas (abutres e algumas espécies de águias), tendo apelado ao Governo Português para que não autorize a utilização desta substância em território nacional ao nível da pecuária.
No seguimento destas preocupações, a Assembleia da República aprovou em abril de 2018 o Projeto de Resolução 1433/XIII apresentado pelo PAN, que recomenda ao Governo Português que não autorize a comercialização de medicamentos veterinários com diclofenac.
De acordo com a ampla informação científica existente e como referem os alertas já feitos por diversas organizações nacionais e internacionais, o diclofenac pode persistir em concentrações letais numa carcaça até sete dias depois da morte do animal. Quando abutres, águias, ou outros animais necrófagos se alimentam dessa carcaça, ingerem também o diclofenac. Em abutres do género Gyps (como o grifo) e em algumas espécies de águia do género Aquila, a substância provoca insuficiência renal aguda que rapidamente leva à morte. Na Índia, bastou que menos de 1% das carcaças disponíveis para os abutres tivessem sido tratadas com diclofenac para causar a redução das populações de três espécies de abutres em mais de 97%, o que levou a que este fármaco tenha sido banido no subcontinente indiano no ano de 2006. Daí para cá tem-se registado uma notável recuperação das populações indianas de abutres.
Portugal possui importantes populações de abutres e de grandes águias com hábitos necrófagos: o abutre-preto (Aegypius monachus), o britango (Neophron percnopterus), o grifo (Gyps fulvus), a águia-imperial-ibérica (Aquila adalberti) e a águia-real (Aquila chrysaetos). Os abutres em particular desempenham um papel único nos nossos ecossistemas, limpando as nossas paisagens de cadáveres de animais mortos, e por isso limitando a transmissão de doenças. A maioria destas espécies tem efetivos muito reduzidos, tendo algumas delas estatutos de conservação muito desfavoráveis em Portugal e no resto do mundo. E todas elas estão protegidas por lei em Portugal e na Europa. Tendo em conta os potenciais impactos do diclofenac nestas espécies, os seus hábitos alimentares e a suas reduzidas populações, caso o diclofenac seja autorizado e utilizado em Portugal, terá um impacto potencialmente devastador nestas aves e também nos ecossistemas onde ocorrem, em consequência do seu importante papel ecológico.
A autorização do diclofenac em Portugal para uso pecuário poderá também colocar em causa de forma irremediável o compromisso e esforço nacionais de conservação das aves necrófagas, desperdiçando uma oportunidade de o Estado Português reiterar o seu empenho relativamente aos objetivos de conservação da natureza e sustentabilidade ambiental a nível nacional e da União Europeia.
Recorde-se que a Convenção Sobre a Conservação de Espécies Migradoras da Fauna Selvagem (CMS ou Convenção de Bona), adotou uma resolução na Conferência das Partes em 2014 (Resolução 11.15 da COP11 da CMS), com o voto favorável de Portugal, que inclui a recomendação legislativa de “proibir o uso do diclofenac veterinário para o tratamento pecuário e substitui-lo por alternativas seguras e já disponíveis, tais como o meloxicam”.
A União Internacional para Conservação da Natureza (UICN) aprovou também uma moção no âmbito do Congresso Mundial de Conservação realizado em setembro de 2016, em que “Apela aos Governos que implementem urgentemente as recomendações da resolução 11.15 da CMS”, incluindo a referente à proibição do uso do diclofenac veterinário.
O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), parceiro nos vários projetos de conservação de aves necrófagas em Portugal, reconheceu já a sua preocupação face à potencial utilização do diclofenac ao nível da pecuária, assim como os riscos que daí advêm para a conservação das populações nacionais de aves necrófagas. A preocupação de todas as organizações envolvidas na preservação destas espécies está evidente na proposta de Plano Nacional para a Conservação das Aves Necrófagas em Portugal, que aguarda ainda aprovação final e implementação.
As organizações subscritoras ficam na expectativa de que as propostas em discussão no dia 10 sejam aprovadas na Assembleia da República, fazendo deste dia um marco positivo para as aves, ecossistemas e saúde pública nacional.