As “alterações climáticas”, o “crescimento demográfico” e os “padrões de consumo” levam a que mais de “dois mil milhões de pessoas” vivam sob “stress hídrico elevado”. Estudos prevêem um “aumento de 20 a 30% de captação de água até 2050”, sobretudo nos setores “doméstico” e “industrial”.
Já o setor da aquicultura de água doce utiliza quantidades de água muito elevadas e, desde logo que, a “melhoria do planeamento” e do “acesso à água” foi uma das “quatro áreas estratégicas” identificadas pela Comissão Europeia para o “crescimento” e “desenvolvimento da aquicultura”. Visto que a disponibilidade de água e espaço são fatores que limitam a expansão desta atividade, há um “enorme interesse” no “desenvolvimento de novas tecnologias”, mais “compactas e eficientes”, para a “produção de água tratada que possa ser reutilizada nas instalações”. É para responder a estes desafios que surge o Aquaval.
À Ambiente Magazine, Paula Castro, professora Catedrática da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, refere que o Aquaval é um projeto financiado no âmbito do concurso transnacional Water JPI, que se foca no “desenvolvimento de soluções” para o “tratamento das águas residuais” que permitam “produzir água com qualidade” para “reutilizar nas explorações” e, assim, “diminuir a necessidade de captação de água”, que é um “recurso cada vez mais escasso”. Para tal, “utilizamos tecnologia que combina organismos de diferentes níveis tróficos”, nomeadamente “bactérias, microalgas e bivalves”, de forma a obter um “sistema de tratamento eficaz e contribuir”, ao mesmo tempo, para a “obtenção de biomassa” seguindo o conceito da “economia circular”.
O projeto é coordenado pelo CBQF – Centro de Biotecnologia e Química Fina da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, e conta com a participação da Universidade de Santiago de Compostela, da Universidade de Torino e, ainda, de uma empresa de aquicultura, o Grupo Tres Mares SA. No CBQF. Nos últimos 15 anos, a equipa tem centrado a investigação em torno das tecnologias de “lamas granulares” que representam “soluções de tratamento de água mais compactas (cerca de 70% de menos área requerida) e eficientes” e com “necessidades energéticas mais baixas (cerca de 30% inferiores) do que a tecnologia convencional”, o que, para a docente, as torna “muito interessantes” do ponto de vista da sustentabilidade ambiental. As soluções, de acordo com a responsável, têm sido desenvolvidas para “tratamento de águas residuais domésticas e agroindustriais muito carregadas”, pelo que o grande desafio do Aquaval foi, precisamente, aplicar tal tecnologia ao “tratamento de águas de aquicultura”, que contêm “níveis baixíssimos de carbono e nutrientes”, mas que, ainda assim, são “tóxicas para os peixes” e, também, para o “ambiente” porque os “volumes de água descarregados são muito elevados”.
Projeto promove a recirculação de água
Paula Castro refere que a “escassez de águas”, especialmente durante os meses mais quentes, “reduz a produção do setor” da aquicultura. E o principal objetivo do projeto passa por “ajudar a colmatar essa limitação”, sobretudo pela “reutilização”, explica. Pretende-se assim, de acordo com a investigadora, que a “tecnologia de lamas granulares utilizada” produza “água com qualidade físico-química” que “permita a sua recirculação para os tanques de produção”, diminuindo assim a “captação de água do meio ambiente” e “promovendo a valorização deste recurso”, seguindo o conceito de economia circular. Os grânulos, compostos maioritariamente por bactérias, foram, segundo a responsável, “combinados com microalgas”, que são “organismos que produzem oxigénio”, resultando numa “melhor oxigenação” e “diminuindo os requisitos energéticos do sistema”, para além de “remover nutrientes”. Numa outra vertente do projeto, foram usados “bivalves” como “sistemas de depuração dessas águas”, que podem posteriormente ser “usados em diferentes aplicações”, desde a “alimentação animal” à “extração de produtos de elevado valor para aplicações na área da veterinária”, exemplifica a investigadora. Paula Castro afirma que tais estratégias seguem o “princípio da gestão integrada de recursos”, em que “promovemos a reintegração de nutrientes, como azoto e fósforo”, e a “recirculação de água”.
Relativamente a balanços deste projeto, a investigadora afirma que as “tecnologias propostas pela equipa de investigação” foram “avaliadas” quer no “laboratório”, quer num “sistema piloto instalado no parceiro industrial”, tendo demonstrado “potencial para tratar água em diferentes fases do processo de produção”. Além disso, acrescenta, foram avaliados “dois tipos de reator de lamas granulares”, sendo o “volume de água a tratar” e a “qualidade físico-química da água tratada” os “parâmetros” que “determinam a sua potencial aplicabilidade nas explorações”. Enquanto que o “reator de grânulos aeróbios em operação sequencial” permite a “obtenção de efluente de elevada qualidade físico-química requerida na parte da instalação” onde ocorre a “desova e os primeiros estágios de crescimento dos peixes”, Paula Castro dá conta que, o “reator de lamas granulares a operar em modo contínuo” produz um “efluente com qualidade suficiente” para os “tanques de crescimento dos peixes adultos, mais resistentes aos poluentes contendo azoto”, permitindo o “tratamento de maiores volumes de água”. Embora seja precisos “ensaios em maior escala” para “comprovar o potencial da tecnologia”, a investigadora considera que, até à data, os “resultados” são promissores.
[blockquote style=”2″]É vital assumir a poluição zero[/blockquote]
Questionada sobre os principais desafios da aquicultura de água doce, em Portugal, a docente indica que, em termos económicos, existe a necessidade de se “conseguir produzir com elevada qualidade” para “responder à procura dos consumidores nacionais e europeus”, que são cada vez mais “conscientes e exigentes” quanto à “qualidade do que comem”. E sendo um setor que usa grandes quantidades de água com elevada qualidade e com necessidades de espaço muito significativas, Paula Castro não tem dúvidas de que “estes serão sempre fatores que surgem na lista de prioridades”. Por outro lado, em termos ambientais, a investigadora considera que é fundamental “evoluir” e “demonstrar” que a aquicultura já não é o que muitos chamavam: “Aviários em rios”. Para tal, alerta a docente, é vital assumir o objetivo da poluição zero: “Zero impacto na água, solo e ar; zero impacto no ordenamento; zero impacto na vida selvagem e zero impacto na saúde humana”. É, assim, “obrigatório que isto se torne uma realidade”, em Portugal e em qualquer outro país, sustenta.
Quando comprado Portugal com outros países, no que à aquicultura diz respeito, a docente indica que ao “olharmos para os números per capita” verifica-se que os “portugueses” são os “terceiros maiores consumidores de peixes do mundo” e os “primeiros” na Europa. Os números, de acordo com a responsável, deveriam ser “sinónimo” de “elevada prioridade” a nível governamental. E, do ponto de vista de Paula Castro, o “Plano Estratégico para a Aquicultura Portuguesa 2014-2020” não faz jus às necessidades: “A produção aquícola nacional continua a ser uma pequena percentagem do pescado consumido e, a nível da União Europeia, o nosso país não atinge 1% da produção total (que é dominada pela Espanha, Reino Unido, França, Itália e Grécia, de acordo com dados oficiais de 2017)”. Na verdade, alerta a responsável, os interesses da aquicultura têm de enfrentar outros bem mais generalizados, como por exemplo, a “produção energética”, a “agricultura”, a “captação para consumo humano e industrial”, a “existência de zonas protegidas” e o “turismo”.
O setor da Aquicultura daqui a 10 anos…
É difícil fazer previsões a 10 anos, por muito que seja necessário prever tendências. Por um lado, temos o crescimento demográfico a nível mundial, que acelera o esgotamento dos stocks de peixe selvagem e consequente aumento do interesse na aquicultura. Por outro lado, as alterações climáticas podem baralhar as contas e até inviabilizar muitas das explorações: a disponibilidade de água, quer em quantidade quer em qualidade, está comprometida e eventos extremos, como seca prolongada, podem inviabilizar a continuidade da produção, tal como uma tempestade violenta é suficiente para destruir as infraestruturas ao longo de dezenas de quilómetros de costa. O destino da aquicultura depende de uma visão integrada para a alimentação, ocupação do território e equilíbrio ambiental. A própria alimentação terá de ser reinventada: antecipa-se uma década transformadora, em que as dificuldades se vão multiplicar, e precisamos de uma boa dose de criatividade para superar estes desafios.