Depois de um mês de abril com recordes de temperatura máxima, o Governo já declarou situação de seca em 40% do território nacional. A esta situação acresce que Portugal está entre os países que mais vai sofrer com a falta de água. Já são muitos os investigadores a alertar para a necessidade e urgência de um consumo mais sustentável.
No meio de tantos alertas, será que a falta de água pode vir a ser a próxima crise europeia?
Por: Jaime Baptista, Presidente do Centro Internacional de Água de Lisboa (LIS-Water)
O que é que significa estar 40% do território nacional em seca?
O índice PDSI (Palmer Drought Severity Index), utilizado pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera, baseia-se no conceito do balanço da água tendo em conta dados da quantidade de precipitação, da temperatura do ar e da capacidade de água disponível no solo. Permite classificar períodos secos e períodos chuvosos. Para além da situação considerada normal, que todos desejamos, podemos ter, por um lado, períodos de chuva extrema, severa, moderada e fraca, e, por outro, períodos de seca fraca, moderada, severa e extrema. No final de maio verificava-se um aumento da área em seca, com cerca de 25% do território em seca fraca, 40% em seca moderada, 26% em seca severa e 9% em seca extrema.
Como é que se explica uma situação de seca em 40% do território nacional no mês de maio?
As variações de precipitação sempre foram uma realidade no nosso País, agora exacerbadas pelas alterações climáticas. Lembro-me bem das secas entre 2004 e 2005, entre 2011 e 2012 e a série de três anos, entre 2017 e 2019. Há uma tendência para maior frequência destes episódios, que se prolongam por mais de um período húmido (outono e inverno) e seco (primavera e verão), afetando também maiores áreas do país. Importa ter presente que foi recentemente apresentada pela Agência Portuguesa do Ambiente a “Avaliação das disponibilidades hídricas atuais e futuras e aplicação do índice de escassez WEI+”. Como principais conclusões retira-se que não se verificam anos húmidos desde 2000, que permitiam encher as albufeiras e recarregar os aquíferos. Nos últimos 20 anos a precipitação diminuiu cerca de 15%, prevendo-se que diminua entre 10 e 25% até ao final do século. Nesse período a disponibilidade de água reduziu-se cerca de 20%. A escassez é extrema no Mira, severa no Sado, Guadiana, Ribeiras do Algarve e do Oeste, elevada no Vouga, Liz, Cávado e Tejo, e baixa no Minho, Douro e Lima. Naturalmente que esta escassez se agrava em períodos de seca, como agora vivemos.
Como é que se prepara um país como Portugal para dar resposta a um desafio desta envergadura?
Na perspetiva dos serviços urbanos de água, ou seja, do abastecimento público de água e da gestão de águas residuais e pluviais, temos naturalmente de assegurar que a população tenha acesso fiável, mesmo em situações anómalas, como quando se verifica escassez de recursos hídricos, nas cada vez mais frequentes situações de seca. Para dar resposta a um desafio desta envergadura há que atuar do lado da oferta (origens alternativas de água), do lado da procura (uso eficiente da água quer pelos utilizadores quer pelas entidades gestoras), do lado da eficiência das infraestruturas (melhoria da eficiência hídrica das instalações prediais e redução de perdas de água nos sistemas públicos de abastecimento) e da resiliência dos sistemas. Vamos analisar cada um destes quatro aspetos.
Atuando do lado da oferta, a utilização de origens alternativas de água, principalmente em zonas com maior índice de escassez, permite minimizar o impacte das secas, podendo combinar a utilização de água de diferentes caraterísticas para diferentes utilizações ou proceder à mistura de águas para a mesma utilização. Para além de novas origens de águas superficiais e subterrâneas, inclui-se a produção e a disponibilização de águas residuais tratadas (águas para reutilização). Inclui-se também a dessalinização e ainda o aproveitamento das águas da chuva, quando se justifique e seja técnica e financeiramente viável, em complementaridade a outras origens.
Atuando do lado da procura, o uso mais eficiente de água pelos utilizadores em geral, incluindo consumidores domésticos, não-domésticos e entidades gestoras, deve seguir as orientações previstas no programa nacional para o uso eficiente da água, assegurando uma redução dos consumos sem prejuízo do conforto, e, consequentemente, uma maior preservação deste recurso escasso. Consiste, assim, em gerir adequadamente a procura, evitando a necessidade do reforço da oferta, com a sobre exploração de recursos hídricos que eventualmente isso implica. Salienta-se a necessidade de sensibilização quer junto dos produtores, para que informem a eficiência dos vários equipamentos de utilização e poupança de água (certificação de eficiência hídrica), quer junto dos consumidores.
Atuando do lado da eficiência das infraestruturas, a redução de perdas de água nas instalações prediais privativas pode representar volumes significativos, especialmente nas habitações mais antigas e noutras tipologias de edifícios (ex. hotelaria, serviços e administração pública), pelo que importa melhorar redes prediais, dispositivos e equipamentos. Complementarmente, a redução de perdas de água nos sistemas públicos de abastecimento, um dos mais gravosos aspetos de falta de eficiência no setor, pode ser realizada através de intervenções construtivas e operacionais específicas pelas entidades gestoras. A modernização e a digitalização dos serviços, tal como a utilização de contratos remunerados em função dos resultados, podem ser contribuições importantes para melhorar a eficiência hídrica, a acontecer nomeadamente sempre que se efetue reabilitação de redes existentes e construção de novas redes. Também a introdução de redes de água inteligentes, com sensorização, medição e controlo digital, e comunicação de dados em tempo real, é importante para a redução de perdas. Trata-se de um problema emblemático destes serviços, cuja resolução tarda em concretizar-se, e que permitiria menor investimento de ampliação, menores gastos de operação e menor consumo de recursos.
Atuando do lado da resiliência dos sistemas, as intervenções construtivas e operacionais no reforço da segurança e da resiliência dos sistemas de abastecimento de água permitem reduzir a vulnerabilidade dos mesmos a secas, por exemplo através da interligação de sistemas de distribuição ou da otimização da gestão de albufeiras. Constituem instrumentos importantes os planos de contingência, com a definição dos procedimentos a adotar em situações excecionais.
É portanto através de uma abordagem combinada, atuando simultaneamente do lado da oferta, do lado da procura, do lado da eficiência das infraestruturas e do lado da resiliência infraestrutural, que os serviços de águas podem enfrentar a crescente e preocupante escassez de recursos hídricos.
Quando é que o cidadão vai dar o devido valor à água? E até lá, o que pode fazer?
É muito importante reforçarmos o valor da água percecionado pela sociedade, enquanto recurso essencial e transversal às atividades humanas, bem como da importância dos seus profissionais, criando uma imagem de marca forte, sólida e inovadora em torno dos serviços de águas. Importa também o reforço da sensibilização, da comunicação e da transformação de comportamentos da sociedade, para que os cidadãos melhorem as suas práticas, utilizem racionalmente a água, percebam a necessidade de adesão aos serviços públicos e mostrem maior disponibilidade para pagar o preço justo por estes serviços. Como exemplo, devem divulgar-se comparações tarifárias credíveis, que utilizem a mesma base de incorporação de valores, evitando avaliações erróneas e injustas de tarifários e ordenações desajustadas entre entidades gestoras, sem consideração da subsidiação ou dos investimentos incorporados e do período da sua amortização na tarifa, que criam perceções erradas entre os consumidores e desconforto entre as entidades gestoras. Implica a quantificação de gastos e benefícios intangíveis dos serviços de águas, não diretamente percetíveis pela sociedade.
Importa realizar ações de sensibilização sobre o valor da água e os serviços de águas com envolvimento de influenciadores de opinião e figuras mediáticas, sobre os serviços de águas dirigidas a outros profissionais (ex. jornalistas, diplomatas, juízes, agentes do turismo, etc.) e sobre o controlo das soluções particulares dirigidas aos cidadãos, quando forem a única solução viável. Importa a elaboração de estudos sobre o valor da água, nas perspetivas económica, ambiental e social, incluindo custos tangíveis e intangíveis. Importa a elaboração de instrumentos de comunicação sobre o valor da água e os serviços de águas (marketing social), a utilizar pelas entidades gestoras. Importa a elaboração de recomendações sobre reforço orçamental das entidades gestoras para comunicação, como instrumento de gestão, e sobre divulgação dos benefícios aos cidadãos da construção de infraestruturas destes serviços. Importa realizar ações de divulgação de casos de referência de sensibilização sobre o valor da água.
Medidas como as que foram tomadas pela França podem e devem ser replicadas em Portugal? Porquê?
Portugal tem um mecanismo próprio de resposta a estas situações, desde há muitos anos. A Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca reúne-se regularmente sempre que necessário, para equacionar a necessidade de adotar medidas contra a seca. De momento, já foram impostas restrições no consumo de água nas barragens da Bravura e do Monte da Rocha, respetivamente no Algarve e no litoral alentejano. A confirmar-se o agravamento da situação, certamente apresentará mais medidas adicionais nas regiões em situação de stress hídrico, nomeadamente Alentejo, Tejo e Viseu.
A agricultura e o turismo são mesmo os setores que consomem mais água ou trata-se de uma “acusação” sem fundamento?
Não creio fazer sentido falar numa acusação. Cada setor de atividade tem as suas necessidades de água. Isso passa-se não apenas no consumo urbano, que representa 13% do total, mas especialmente na agricultura, que representa 70%, e também noutros usos, como na indústria, na pecuária, no golf, etc. Na generalidade dos países a agricultura é o grande consumidor, e isso é natural. Importa que todos estes setores aumentem a sua eficiência.
Como tornar estes setores mais despertos para o problema?
Eles já estão despertos para o problema. Estes setores participam de forma crescente e informada nos debates sobre as questões da água e mesmo nas comissões criadas para estas questões. E é importante que assim seja.
A água pode vir mesmo a ser a próxima crise europeia?
O Fórum Económico e Social, através dos seus relatórios de riscos globais que divulga anualmente, tem vindo a classificar sistematicamente a crise hídrica nos cinco maiores riscos globais em termos de probabilidade ou impacto. E a Europa sabe a importância da água enquanto recurso que condiciona a paz e a guerra entre países, bem como a importância dos serviços urbanos de águas que condiciona o desenvolvimento ou o empobrecimento de países e regiões. Cabe-nos ter uma atitude proativa e inteligente para minimizar esses riscos.