Depois de um mês de abril com recordes de temperatura máxima, o Governo já declarou situação de seca em 40% do território nacional. A esta situação acresce que Portugal está entre os países que mais vai sofrer com a falta de água. Já são muitos os investigadores a alertar para a necessidade e urgência de um consumo mais sustentável.
No meio de tantos alertas, será que a falta de água pode vir a ser a próxima crise europeia?
Por: Miguel Lemos, Presidente Conselho de Administração da Águas de Gaia
O que é que significa estar 40% do território nacional em seca?
Sendo obviamente uma situação preocupante, convém esclarecer que o despacho do Mistério da Agricultura e Alimentação que declara que 40% do território nacional se encontra em seca, é antes de mais um mecanismo que permite acionar um conjunto de medidas europeias de apoio aos agricultores que carecem de aprovação da Comissão Europeia e como tal levaram a Ministra Maria do Céu Antunes a fazer esta declaração na reunião do Agrifish, o Conselho e Agricultura e Pescas da EU.
Esta decisão é tomada, com base nos dados do índice Palmer Drought Severity Index (PDSI), que é um indicador que monitoriza os eventos de seca, e que apresenta “um agravamento da intensidade de seca” em abril em relação aos meses anteriores. Segundo estes dados e constante do comunicado do Ministério da Agricultura e Alimentação, cerca de 40 municípios encontram-se em situação de seca severa e 27 em seca extrema correspondendo a uma superfície equivalente a cerca de 40% do território nacional, situação afeta negativamente e em grande escala a atividade agrícola e consequentemente rendimento dos agricultores, levando por isso a esta declaração.
Como é que se explica uma situação de seca em 40% do território nacional no mês de maio?
Explica-se fundamentalmente devido a fenómenos meteorológicos, com um aumento anormal das temperaturas média e máxima e uma também anormal reduzida precipitação durante o mês de março e abril, principalmente no sul do país, com especial incidência nas bacias hidrográficas do Sado, Mira, Arade e das Ribeiras do Algarve e afetando de forma mais drástica os distritos de Beja, Évora, Faro, Portalegre, Santarém e Setúbal.
Infelizmente, o aquecimento global é mesmo uma realidade, e se até então e em alguns casos as alterações climáticas eram uma questão secundária ou até mesmo uma “questão de fé” com lugar a negacionistas do problema, hoje julgo ser cada vez mais unânime que estamos perante um problema sério que afeta a humanidade e que urge tomar medidas para as mitigar.
Como é que se prepara um país como Portugal para dar resposta a um desafio desta envergadura?
Do ponto de vista do setor da água e em especial das entidades gestoras, o foco deve ser cada vez mais na redução das perdas de água e da água não faturada, promovendo assim, uma gestão rigorosa, económica e ambientalmente responsável. É fundamental tornar os sistemas mais resilientes e eficientes. Por outro lado, devem igualmente ser tidos em conta “outros fatores desta equação”, sendo sempre que possível preferível uma visão integral do círculo urbano da água e, portanto, ser tido em conta as águas residuais domésticas e as águas pluviais, assumido que são também importantes “fontes” de água e que devem ser entendidas como recursos valorizáveis. No entanto, na minha opinião, devemos ter em conta as necessidades do país, das várias regiões, e apontar os investimentos à dessalinização da água do mar, onde seja realmente necessário combater o stress hídrico em zonas costeiras áridas ou o reaproveitamento das águas residuais com racional económico e ambiental.
Por outro lado, não podemos continuar a assistir em Portugal a sistemas de distribuição com elevadas perdas, ao mesmo tempo que não pode mais ser tolerado tarifários que não promovam a cobertura integral dos custos promovendo uma degradação dos sistemas e tornando um círculo vicioso.
Quando é que o cidadão vai dar o devido valor à água? E até lá, o que pode fazer?
Em 2005, quando David Foster Wallace, o “imortal” autor de A Piada Infinita, proferiu um discurso na sua cerimónia de graduação na Universidade de Kenyon, no qual disse: “dois jovens peixes nadam juntos e um dia por acaso encontram um peixe mais velho a nadar em sentido contrário, que lhes acena e diz: “Bom dia, rapazes, como está a água?” Os dois jovens peixes continuam a nadar, até que um deles olha para o outro e pergunta: “Mas que raio é a água?” Esta fabula, remete-nos para o facto de não darmos importância a um recurso tão importante e essencial à vida porquanto ele está disponível quase de forma universal nos países desenvolvidos, na realidade, até há muito pouco tempo a água potável não era encarada como um recurso finito, nem tão pouco se percebia a complexidade de todo o processo por detrás dos sistemas de distribuição de forma a termos acesso a água qualidade para consumo humano apenas quando sentimos os efeitos da escassez começamos a dar importância à água. Acredito que hoje em dia, o cidadão esteja consciente do valor da água e que vários comportamentos têm vindo a ser alterados. Não tenho dúvida que as gerações mais novas, estão muito mais atentas e preocupadas com as questões ambientações, por isso uma das coisas que se pode e deve continuar a fazer é apostar na educação. A educação ambiental é fundamental para alterar comportamentos, nomeadamente comportamentos de consumo, a “escola” no sentido mais lato tem um papel crucial!
Medidas como as que foram tomadas pela França podem e devem ser replicadas em Portugal? Porquê?
Em momentos excecionais, medidas excecionais. Por isso, temos que estar cada vez mais preparados para uma realidade em que, com base nos dados sobre a situação dos recursos hídricos e a situação de seca, tenhamos que, em algumas regiões, tomar medidas mais drásticas como as que França acaba de adotar. No entanto, penso que mais do que medidas pontuais, necessitamos de medidas estruturais: gestão mais eficiente, investimento na renovação dos sistemas, forte combate às perdas de água e água não faturada, novas origens de água, utilização de “tipos” de água diferentes consoante o uso, reaproveitamento e consumo racional.
A agricultura e o turismo são mesmo os setores que consomem mais água ou é trata-se de uma “acusação” sem fundamento?
Não há dúvida que a agricultura é o setor que mais consome água, esta afirmação nada tem contra o setor agrícola, pelo contrário, até porque todos sabemos da importância da agricultura. Por outro lado, o turismo que também contribui para o consumo de água, refira-se por exemplo o turismo à volta do golfe ou outras atividades de grande consumo, mas que são também muito importantes para a economia do país, contribuído de forma muito positiva para a nossa balança comercial e para o PIB nacional.
Então, há que conciliar a importância destes dois setores, um vital para o ser humano, outro importante para a economia e desenvolvimento do país e torná-los não parte do problema, mas sim parte da solução. Mais uma vez, não podemos continuar a permitir sistemas ineficientes, enormes desperdícios de água ou mesmo a utilização por exemplo da mesma água que bebemos para regar, por exemplo, um campo de golfe, e hoje já é possível, e já se utiliza água residual tratada para rega ou para outras utilizações. O setor agrícola tem também que fazer uma aposta clara na eficiência hídrica.
Como tornar estes setores mais despertos para o problema?
Julgo que já existem bons exemplos e uma consciência do problema de uma forma geral e destes dos setores em particular. Como referi, há que tornar estes setores mais sustentáveis.
Talvez os sistemas de incentivo à agricultura devam deixar de ser apoios diretos à atividade ou ao regadio, mas sim à modernização e à aposta na tecnologia para tornar o setor mais eficiente do ponto de vista hídrico, promover o uso sustentável da água e porventura tornar o setor mais competitivo. No que diz respeito ao turismo, o mesmo deve acontecer, começando pela utilização de origens alternativas de água em situações de grande consumo (campos de golfe, piscinas, etc.).
A água pode vir mesmo a ser a próxima crise europeia?”
Em 2008, aquando da crise financeira mundial em consequência da crise do Subprime, as preocupações com a sustentabilidade ambiental e, em especial com as alterações climáticas, esmoreceram. A resposta à crise financeira tinha prioridade perante uma “eventual” crise ambiental. Hoje, mesmo após a crise pandémica e com a atual guerra na Ucrânia e a crise provocada pela inflação e a subida das taxas de juro, o apoio generalizado à luta contra as alterações climáticas continua presente e não parece ter sido afetado, pelo contrário, a resposta à crise económica surge de mãos dadas com as preocupações em reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, em limitar o aquecimento global de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, em descarbonizar a economia e claro no uso sustentável dos recursos hídricos, em causa está que a “crise hídrica” não é futuro, é presente!
Outro lado importante e ter em conta, é a dimensão securitária. A água hoje assume uma tão grande importância que é alvo de disputas. Médio Oriente, Sudão, Bolívia já foram palcos de conflitos violentos provocados pela água, no passado, a “Guerra dos Seis Dias” esteve diretamente ligada ao controlo da água do rio Jordão, que serve o Líbano, Síria, Israel, Cisjordânia e Jordânia, mesmo hoje em dia, na guerra da Ucrânia a água ganha lugar de destaque. Um exemplo é o nível de água da reserva Kakhovka do rio Dnipro. O reservatório é crítico para o sul da Ucrânia, fornece água às aldeias e cidades da região e irriga cerca de 202.000 hectares de terras agrícolas, bem como é fundamental para o arrefecimento da central nuclear de Zaporizhzhia. A situação desta reserva, destaca o crescente impacto da guerra provocada pela Rússia no abastecimento de água da Ucrânia.
A água foi, é e será, motivo de crises e conflitos, pelo que preservar este recurso é simultaneamente preservar a paz e o progresso.