As alterações climáticas são uma realidade e os efeitos que estão a ter no planetas são já irreversíveis. Fala-se em períodos cada vez mais longos de seca e, consequentemente, de escassez da água. Recentemente, realizou-se o XI Congresso Ibérico sobre Gestão e Planeamento da Água, que juntou investigadores e utilizadores de água de Portugal e Espanha, e onde se promoveu a discussão de ações que contribuam para implementar uma transição hídrica justa para sociedades pós-fósseis mais adaptadas aos efeitos das alterações climáticas.
Em entrevista à Ambiente Magazine, Susana Neto, presidente da Comissão Diretiva da APRH (Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos) e copresidente da Comissão Científica do XI Congresso Ibérica da Água, falou exclusivamente sobre o caso portugês no contexto da Península Ibérica e sobre a urgente necessidade de serem incluídas estimativas de caudais ecológicos.
De acordo com a responsável, uma das conclusões mais relevantes que deve ser tirada do recente congresso é de que uma “parte importante do conhecimento que existe neste momento não tem passado à prática”. E esta conclusão verifica-se nas áreas da “qualidade ecológica”, na “participação e acesso transparente à informação” e na “adaptação às alterações climáticas”.
A APRH promoveu um debate sobre os problemas dos caudais no Tejo em outubro de 2019 e que resultou em diversas conclusões. Embora haja um “cumprimento da Convenção por parte de Espanha”, “a libertação de caudais que é feita não garante a regularidade necessária de volumes no sistema fluvial”, de forma a “assegurar o bom funcionamento ecológico das massas de água do lado Português”. E a Convenção de Albufeira de 1998 remete, no seu artigo segundo, para a “consonância com a legislação da União Europeia”. Assim, quando em 2000 a Diretiva Quadro foi aprovada pela Comissão Europeia e pelo Conselho, o objetivo de “bom estado ecológico de todas massas de água” passou a estar “incluído neste âmbito e no cumprimento da Convenção”, vinca Susana Neto.
Na visão de Susana Neto, o Governo de Portugal deveria “utilizar o enquadramento dado pela Diretiva Quadro da Água (DQA) para gerir, de forma mais compreensiva” ao nível dos territórios das bacias hidrográficas, a “qualidade ecológica dos rios nacionais e internacionais”, algo que se enquadra na própria Convenção, permitindo a Portugal “negociar ou, mesmo, pressionar o Governo de Espanha” no sentido de “garantir um regime de caudais contínuos”. Mas tal posicionamento “depende de ser assegurado” do lado português do Tejo: “O mesmo que está a ser feito no lado espanhol para que sejam estimados caudais ecológicos para os troços nacionais, no sentido de se cumprir a Diretiva e garantir o equilíbrio ecológico dos rios partilhados”.
No entender da presidente da APRH, verifica-se que, na “bacia do Tejo” do lado espanhol, por exemplo, “há um melhor cumprimento da Diretiva Quadro da Água”, na sequência do “Acórdão do Supremo Tribunal espanhol (ATS 309/2019, de 11 de março)”, que “obriga as autoridades a garantir um caudal permanente em diferentes pontos do Tejo”. E este estabelecimento de caudais permanentes “não tem lugar no lado português” mas a “aplicação da mesma metodologia poderia ser adaptada do nosso lado e ir sendo melhorada”, declara.
Além disso, Susana Neto considera que deverão ser “garantidos os necessários mecanismos de avaliação” e “monitorização” de forma “clara” e “concertada” entre os dois países e com “dados acessíveis e publicitados em tempo útil” e de forma “absolutamente transparente”. Para que tal aconteça, a responsável declara que seria “necessário” que a CADC – Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção de Albufeira – responsável pela “implementação e acompanhamento da Convenção”, passasse a “disponibilizar de forma clara, fiável e regular toda a informação necessária” para se “saber se Espanha cumpre (ou não) a Convenção” e que “adapte a mesma (tal como previsto no seu artigo 16.º) a situações imprevistas como as alterações climáticas” ou outras que “carecem de ação conjunta e coerente dos dois Estados”.
CE poderia desempenhar um “papel pedagógico muito importante” no “enquadramento” e no “cumprimento” da DQA
Questionada sobre as recomendações que a Comissão Europeia (CE) poderia fazer conjuntamente a Portugal e Espanha, Susana Neto declara que o “interesse supranacional” deveria ser o “objetivo mais elevado da gestão das massas de água da Península Ibérica” e, em particular, de “todos os rios e aquíferos partilhados”, ultrapassando o “simples somatório” dos objetivos nacionais. “Trata-se de recursos de uma região dentro do espaço e território europeu e interessa a todos”, alerta. Nesta matéria, a responsável reconhece a “dificuldade” que há em “garantir cabalmente o cumprimento dos acordos internacionais”, dando como exemplo, o “acompanhamento” e “monitorização” do cumprimento das Convenções das Nações Unidas: “Não existe uma entidade fiscalizadora supranacional com essa função”. No entanto, Susana Neto evidencia que, no caso da União Europeia, “existe uma proximidade que é a própria União” e que “poderá favorecer o entendimento global no âmbito do cumprimento da DQA que tem objetivos muito mais amplos de qualidade ecológica”. A “função de zelar pelo cumprimento dos princípios desta Diretiva a nível regional (supranacional)” pode ser “necessária e relevante”, no sentido de “garantir não só a qualidade” mas também a “sustentabilidade ecológica das massas de água à escala regional da Península Ibérica”, sustenta.
A CE poderia assim desempenhar um “papel pedagógico muito importante” no “enquadramento” e no “cumprimento” da DQA numa “ótica mais holística” a nível dos “diversos territórios e regiões na Europa”. E, nesse contexto, a presidente da APRH refere que a Comissão poderia dar recomendações aos dois países (Portugal e Espanha) no sentido de concertar esforços para “acertaram efetivamente as estratégias de planeamento e gestão”, incluindo “procedimentos” e “sistemas de monitorização”, assim como “metodologias de cálculo de caudais ecológicos”, entre outros, garantindo o “bom estado ecológico das massas de água ibéricas no seu todo”. Do ponto de vista regional e europeu, “não faz sentido nenhum ter apenas um dos países a estabelecer caudais ecológicos e o outro não”, vinca.
Mas a área de ação da CE não se fica por aqui: “Poderia também desempenhar um papel de facilitador da difusão e aplicação dos conhecimentos e investigação aplicada recentes”, ajudando a que “os dois países acertem o passo no cumprimento da DQA”, tendo em vista “um bem maior que os seus próprios interesses nacionais na gestão dos recursos hídricos”. Susana Neto dá como exemplo o atual contexto das alterações climáticas: “Sabemos que o conhecimento disponível resulta de modelos e avaliação a uma escala regional em que a Península Ibérica é significativa”. Assim, “este conhecimento poderia ser mais facilmente interiorizado por cada um dos Países Ibéricos se essa escala de análise e de referência fosse adotada por ambos nas suas políticas nacionais e nos processos de planeamento das bacias hidrográficas, mesmo as não partilhadas”, sublinha.
Aquela que foi a recomendação da CE no boletim WISE (2008), onde declarava que a “cooperação em diversas regiões hidrográficas internacionais – incluindo nas vastas bacias do Danúbio e do Reno – havia sido sempre intensa” mas que “seria necessário, no futuro, garantir que os Estados-Membros partilham mais informações e estabelecessem mais métodos comuns”, deveria ser tida como exemplo: “Poderia ser reforçada hoje aos dois países da Península Ibérica”, afirma a responsável, destacando, principalmente o “estabelecimento dos caudais ecológicos em todos os troços das bacias hidrográficas partilhadas e, por isso, internacionais e, por seu turno, europeias”.