“A revisão da Lei da Água poderá tornar mais robusta a resposta em situações de seca”
Todos os anos, o cenário de escassez de água e de seca é referido em Portugal, e parece que a situação tende a agravar-se. A Ambiente Magazine foi compreender o que é preciso mudar na gestão das águas e quando é que isso tem de acontecer.
Todos gostam de garantir os seus bens e, por isso, face ao cenário atual, deve-se preservar o bem mais precioso de todos e essencial à vida – a Água – que garante a existência de todos os ecossistemas e da sua biodiversidade.
Além de ser um recurso usado todos os dias, sem exceção, mesmo nas atividades económicas e em produtos, é uma garantia de qualidade de vida. Mas, apenas se for conservada para tal. O ciclo hidrológico, pode ler-se no site oficial da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), ou seja, a circulação da água entre a atmosfera e o globo terrestre, “está sujeito a pressões externas, como a poluição, o uso excessivo, a introdução de espécies exóticas e até alterações físicas, como alterações de caudal”.
Posto isto, a Ambiente Magazine aprontou-se, junto de algumas entidades envolvidas no setor, a descobrir qual o estado atual das águas em território nacional e da sua gestão, e o que é preciso mudar.
Pois, Jorge Cardoso Gonçalves, presidente da Comissão Diretiva da APRH (Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos), explica que o nosso país, enquanto membro integrante da União Europeia, “dispõe de legislação, regulamentação e planos estratégicos robustos, que incorporam um importante património na gestão dos recursos hídricos”, e que isso se traduz em “água em quantidade e qualidade, rios despoluídos e praias limpas”.
Mas, mesmo assim, não tira de cena a necessidade de uma Política da Água que seja assente em “instituições fortes e infraestruturas geridas de forma robusta, eficaz, eficiente e resiliente”, especialmente capaz de enfrentar os problemas atuais e futuros que este recurso enfrenta, como as alterações climáticas e os seus efeitos devastadores, como é o exemplo da seca.
Para que se entenda melhor esta gestão da água em Portugal, Eduardo Marques, presidente da Direção da AEPSA (Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente), explicou, sinteticamente, o modelo das águas vigente. Para começar, saiba-se que a gestão é assegurada a dois níveis: os serviços em alta, que pertencem na maioria ao grupo das Águas de Portugal e que dizem respeito à captação, tratamento, adução e armazenamento e, no caso das águas residuais, ao transporte, tratamento e descarga de efluentes tratados; e os serviços em baixa, que dizem respeito à distribuição de água no seu abastecimento e na recolha de residuais no respetivo saneamento. No caso destes últimos serviços, a titularidade pertence aos municípios, que podem gerir de forma direta, de forma delegada, com a existência dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento (SMAS), ou de maneira concessionada a empresas privadas.
E esta permissão da entrada do setor privado na gestão dos serviços de água, acredita o responsável da AEPSA, representou um “significativo aumento da qualidade dos serviços aos utilizadores e capacidade de investimento”. Todavia, nos últimos anos, parece verificar-se uma “estagnação da intervenção de empresas privadas, que abrangem apenas 20% da população portuguesa”, e uma maior aposta do Estado, via Águas de Portugal, na gestão em baixa.
E como nem todos os modelos são perfeitos, foi importante reconhecer quais os pontos fracos do atual plano em vigor. O engenheiro da APRH não negou que são precisas melhorias, essencialmente no reforço das políticas por bacia hidrográfica, na delegação de responsabilidades por região e por setores, além de uma aposta na informação, de forma a “obter mais e melhores dados”, e de um reforço nos mecanismos de monitorização e avaliação (isto que, atualmente, é, em grande parte, responsabilidade da entidade reguladora independente, a ERSAR, que defende os direitos dos utilizadores e salvaguarda a sustentabilidade e viabilidade económico-financeira dos sistemas e das entidades gestoras).
Desta forma, a APRH promete, já no próximo ano de 2024, organizar um conjunto de “Encontros Ibéricos por Bacia Hidrográfica”, exatamente para promover a discussão a esta escala, considerando os desafios regionais e a coesão territorial.
Entre outras falhas, está a “estagnação em média dos principais indicadores de desempenho do serviço prestado pelas entidades gestoras, com especial relevo para o valor das perdas de água, consequência da quase inexistência, neste período, de novos concursos de concessão e devido à dependência de muitas entidades gestão públicas, especialmente as de gestão direta, para os recorrentes subsídios, quer municipais, como estatais ou europeus, quer seja para investimento como até para a operação correntes”, explicita Eduardo Marques, que ainda acrescenta o facto da maioria das entidades gestoras não cobrir custos, não cumprir o princípio do utilizador pagador, isto é, “há uma subsidiação transversal a todos os utilizadores, normalmente apenas por razões políticas, em vez de privilegiar a subsidiação a quem efetivamente precisa”.
Assim, “a utilização de subsídios (ou donativos) é apenas aceitável numa primeira fase de infraestruturação e devem ser utilizados parcimoniosamente assegurando o seu carácter não permanente”, defende.
Um novo modelo de gestão de águas em Portugal?
Apesar de se falar, recorrentemente, nos problemas atuais que os recursos hídricos enfrentam, Portugal, felizmente, à exceção de situações pontuais, tem assegurado, através de um sistema de abastecimento urbano estruturado e com boas infraestruturas, que a seca não se sinta nas torneiras dos consumidores e dos serviços que da água dependem. Porém, não significa que não seja necessário repensar os usos (mais eficientes) da água potável e não potável.
E para isto ser alcançado, acredita a AEPSA, é preciso uma maior intervenção do setor privado, à semelhança de países como Espanha e França, cuja participação dos privados se estende a cerca de 50% da população: “contrariamente ao que seria lógica e desejável, o Estado tem vindo a implementar medidas e orientações que comprometem a atividade das empresas privadas concessionárias, com prejuízo quer para a sustentabilidade ambiental, quer para a qualidade do serviço prestado aos utilizadores”.
Ainda mais acusa Eduardo Marques, que as Águas de Portugal fizeram sentido enquanto instrumento de realização de investimentos supramunicipais, mas que agora, passando de uma entidade gestora para um operador em baixa, “por natural falta de aptidão e enquadramento”, tem tido um impacto negativo no desempenho do setor.
“É preciso colocar na equação a “bomba-relógio” da não renovação de infraestruturas hidráulicas que começam a atingir o seu tempo de vida”
“Diversos problemas relacionados com a gestão dos recursos hídricos não se resolvem por falta de soluções técnicas, mais ou menos inovadoras, mas antes por dificuldades sociais, institucionais e de decisão”, afirma Jorge Cardoso Gonçalves, que é pela aplicação do Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais (PENSAARP 2030), “cuja visão passa por atingir serviços de água de excelência para todos”.
Desta forma, “a revisão/adaptação da Lei da Água poderá tornar mais robusta a resposta em situações de seca, reforçando os instrumentos de combate à escassez de água”, diz o presidente da APRH, que alerta ainda que “as medidas a implementar necessitam de suporte técnico, de investimento na reabilitação e reforço de infraestruturas, da aposta em inovação e tecnologia, e do envolvimento e compromisso de todos”, desde as entidades gestoras aos consumidores.
E os “Pactos da Água”, sugeridos pelo presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, ao nível das regiões do país, para uma gestão mais otimizada do recurso, poderão ser efetivos a prazo? Jorge Cardoso Gonçalves acredita que poderão ser um “instrumento supra-setorial, beneficiando a negociação entre utilizadores”. E exemplifica com um aprofundamento das questões bilaterais Portugal-Espanha, na promoção de um “Pacto Ibérico para a Água”, tendo como base a elaboração de planos de gestão para a seca e a escassez, que sejam coordenados pelos dois países.
Já o responsável da AEPSA responde com prontidão: “há que atempadamente, isto é já, repensar, planear, simular diferentes cenários para estarmos mais bem preparados para um futuro ainda muito incerto. É necessário construir ou adaptar os sistemas para serem mais resilientes em cenários adversos de diferentes níveis”.
Mas em jeito de conclusão, foi o presidente da APRH que falou na urgência de uma gestão inteligente da água, desde a origem até ao mar e nos vários setores. E para lá chegar, é necessário apostar na capacitação de profissionais, na inovação, na investigação, no desenvolvimento e em novas tecnologias, pois “o uso da água é um processo de conciliação”.
Relembra-se que as disponibilidades hídricas, em Portugal Continental, provêm das precipitações (60%) e do escoamento dos rios internacionais (40%), com destaque para o Tejo, o Douro e o Guadiana, dizem dados disponíveis no site Turbilhão de Frescura. O sector da agricultura é responsável por cerca de 75% do total do volume de água utilizado. Segue-se o sector industrial com 14%, o consumo municipal com 7% (67% doméstico) e, por último, a aquacultura com 6%.
A utilização da água subterrânea é bastante acentuada, sendo responsável por 57% do abastecimento doméstico e industrial do continente português. No Algarve esse valor sobe para 94%, dada à fraca disponibilidade de águas superficiais.
Mas ainda mais, não se pode esquecer que em setembro deste ano, como noticiou o jornal Negócios, Nuno Lacasta, presidente da APA, alertou para o facto de Portugal vir a perder 30% a 40% da disponibilidade física das massas de água, depois de já se ter verificado uma redução na ordem dos 25% da precipitação. A isto ainda somou a queda de 26% no escoamento de águas a partir do território vizinho.
“Considera-se necessário mudar o paradigma da gestão da água em Portugal, sendo a Lei da Água uma ferramenta estruturante que deverá ser adaptada à nova realidade, quer devido às já existentes e muito preocupantes alterações climáticas, como tendo em consideração a estagnação do setor da água na última década”, rematou Eduardo Marques, presidente da Direção da AEPSA.
*Este artigo foi publicado na edição 103 da Ambiente Magazine