“A criação das taxas e taxinhas acontece porque o mercado que diz ser perfeito não funciona de modo perfeito”
A pouco mais de dez dias para a COP 26 (Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas), a IKEA Portugal quis juntar esta terça-feira, no webinar “A caminho da COP 26 – Vamos construir um futuro melhor”, vários especialistas para falar sobre a posição e o contributo que Portugal pode e deve ter no encontro mundial. A certeza que ficou é de que há uma preocupação generalizada em alcançar a neutralidade carbónica. No entanto, são muitas as dúvidas das empresas e dos consumidores sobre qual o caminho certo para se conseguir a desejada neutralidade.
Não há dúvidas de que Portugal se tem esforçado para cumprir os objetivos que os governos mundiais se propuseram, nomeadamente a redução de produção de energia produzida a partir de carvão, a redução ou eliminação dos subsídios aos combustíveis fósseis ou, ainda, apostar num sistema de fiscalidade. Inês Costa, secretária de Estado do Ambiente, sustenta esta posição dando como exemplo os projetos relacionados com proteção costeira e combate à subida do nível das águas do mar, o Plano de Ação de Economia Circular ou a revisão do contexto legislativo sobre gestão de resíduos (ou gestão de recursos). Contudo há uma “questão de fundo” que parece ainda não estar a ser abordada de forma suficientemente séria: “Para cumprirmos os objetivos do Acordo de Paris, temos de ter consciência que precisamos de reduzir o consumo de matérias-primas e de energia”. Isto significa que “não haverá cumprimento das metas, apostando unicamente em tecnologias ou na eficiência”, afirma, reiterando a importância de se falar no “rebound effect” quando se fala de eficiência: “Quanto mais eficientes somos, mais condições criamos para se produzir mais e mais. Temos de ter consciência desses efeitos indiretos associados à progressão de eficiência máxima e da questão tecnológica”. Por isso, “não basta mudar o hardware, temos que mudar o software”. E o “software” é tudo aquilo que diz respeito aos “instrumentos políticos” que permitem às empresas mudar o seu ADN e “perceber que investir em modelos de negócios ou modelos de produção e consumo que sejam muito mais eficazes na utilização de recursos é garantia de competitividade no longo prazo. Quando se perceber que mudar o sistema de produção e consumo não é um ataque à competitividade das empresas ou retirada de qualidade de vida, aí podemos começar a falar a sério em sermos neutros em carbono e carbono negativo”, afinca. O “desejo pessoal” de Inês Costa para a COP 26 é precisamente “dar início” a esta discussão. Caso contrário, “receio que não iremos lá chegar, pelo menos, com a rapidez e o impulso necessários”.
[blockquote style=”2″]Estamos em condições para antecipar (a neutralidade) para 2040[/blockquote]
Tratando-se de “problemas complexos”, a visão de João Menezes, secretário-geral do BCSD Portugal, é de que precisam de “sistemas de governança integrados” e de convocar todos os setores: “Entendemos que o esforço de orquestração, de definir um road map para o futuro e a concertação dos diversos players cabe ao setor público, nomeadamente ao Governo”, sendo que este pode ser mais exigente a vários níveis, como no “contributo” que Portugal pode dar ao mundo em contexto de COP 26. “Se fomos o primeiro país a anunciar a neutralidade carbónica até 2050, estamos em condições para antecipar para 2040, obviamente de forma participada e refletida em conjunto”. Cabe também ao Governo definir os incentivos e regular de forma restritiva: “Entendemos que seria interessante resgatar um Plano de Ação para a Economia Circular. Nada como ter uma ambição e uma concertação conjuntas”. Outra questão tem que ver com as “taxas de carbono”, os “mercados de comércio de emissões” ou a “regulação de mercados de compensação voluntários”, onde as empresas podiam começar a ter “sistemas de compensação voluntários. Mas é preciso regulação”, atenta.
Já sobre a “solução propriamente dita”, João Menezes também parece ir ao encontro da ideia defendida por Inês Costa: “Não passa apenas por reciclar, reutilizar e até reinventar, mas sim reduzir: reduzir níveis de produção, reduzir níveis de consumo”.
Voltando à complexidade dos desafios, o secretário-geral do BCSD recorda que nem o período de confinamento provocado pela pandemia da Covid-19 foi suficiente para cumprir o Acordo de Paris, pois implica uma redução global anual de 7% das emissões de CO2. “Depois de anos sucessivos de recordes de emissões, em 2020, reduzimos 5,8% a nível global. Este ano, tudo indica que vamos aumentar as emissões”, afirma, questionando “como é que vamos conseguir reduzir mais as emissões do que reduzimos em 2020 confinados? A escala e a magnitude do desafio é enorme e a urgência não podia ser maior: temos 10 anos”.
João Menezes lembra a resposta de Portugal à crise de “subprime” e das dívidas soberanas, que aconteceu há cerca de 10 anos, e que passou pela “injeção de liquidez” no sistema para recuperar “níveis de produção, consumo e investimento. Não aproveitamos para responder a outras crises estruturais, como a crise de biodiversidade e das alterações climáticas”. Agora, a necessidade de responder à crise social e pandémica pode levar a pôr de lado outra vez as crises estruturais e isso pode levar a que surjam “cada vez mais pandemias e crises socioeconómicas”. Portanto, apesar da transição ter de ser “justa” e “gradual”, o responsável alerta para os “momentos” em que será preciso tomar uma posição que pode ser impopular. Um bom exemplo disso é a atual crise nos combustíveis fósseis: “Não se pode dar um sinal de diminuir os impostos à primeira manifestação de que o grande público não está disponível para pagar mais pelos combustíveis fósseis: nós vamos ter que pagar mais pelos combustíveis fósseis”, reitera.
[blockquote style=”2″]A prevenção é garantir competitividade no futuro[/blockquote]
Para Inês Costa, as crises, tal como as desculpas, devem ser evitadas: “Fazer isso implica, por vezes, tomar decisões que, num primeiro momento, podem ser complicadas de aceitar, mas que têm um objetivo de longo prazo”. E Portugal, em matérias ambientais, tem valias desconhecidas e, que, segundo a governante, têm sido determinantes para se mudar o “software”: “Em 2015, foi traçada uma visão muito centrada em três pilares – descarbonização da economia, valorização do território e economia circular – e que é alicerçada numa forte componente de educação, formação ambiental e no Fundo Ambiental. E esta visão sistémica ajudou a orientar uma série de ações externas, mas também internas que envolvem outras áreas políticas”. Alguns anos mais tarde, surge o Pacto Ecológico Europeu que assenta, precisamente, nessas três vertentes: “Por isso, em termos de ambição, de política, de metas e de objetivos, ao nível da área governativa do ambiente, tem havido progressos, mas é difícil fazer este diálogo para fora”. E dos muitos desafios, há ainda questões que não são colocadas no objetivo de prevenção, sendo que a primeira reação das empresas é questionar se a competitividade é posta em causa. “A prevenção é garantir competitividade no futuro: não é objetivo prejudicar o setor empresarial”. E, por isso, a criação das ditas “taxas e taxinhas” acontece, precisamente, porque o mercado que diz ser perfeito não funciona de modo perfeito. “É esta tipologia de taxa e de impostos que têm de ser criados para fazer o equilíbrio do mercado e para que as externalidades ambientais passem a ser internalizadas dentro dos custos das empresas”. Apesar do objetivo e da ambição ser partilhada por todos, Inês Costa não tem dúvidas de que aquilo que difere é, muitas vezes, o caminho correto para lá se chegar: “No âmbito do SDR (Sistema de Depósito de Resíduos), todos temos a certeza que é uma opção correta e que vai acontecer, mas todos têm uma ideia diferente de como tem que funcionar”. É essa a dificuldade que está na “atrás da cortina da ação governativa” que, muitas vezes, está “oculta do grande público”, remata.