Quando muitos setores se viram confrontados com as restrições que a pandemia da Covid-19 ocasionou, como as limitações horárias ou o medo de sair de casa, a construção na maior parte dos países da Europa cresceu e cresce todos os dias. Isto não significa, contudo, que o setor da construção não enfrenta desafios, até pelo contrário: é aquele a quem mais se exige quando o tema é neutralidade ou transição climática. E tal como noutros, este setor carece de mão-de-obra e de escassez de materiais. Partindo deste cenário, a Ambiente Magazine quis saber, junto de vários stakeholders, de que forma é que estes desafios podem condicionar a construção sustentável.
Para Otmar Hubscher, presidente da ATIC (Associação Técnica da Indústria de Cimento) e CEO da SECIL, a transição climática e digital é um dos grandes desafios do setor da construção: “É uma ambição à qual a Indústria Cimenteira se encontra preparada para responder, explorando propriedades como a inércia térmica do betão, associada a sistemas inteligentes de gestão de energia de edifícios e a fontes de energia renováveis”. E o cenário de escassez de matérias-primas vem reforçar a importância da “utilização de produtos e matérias-primas locais que minimizam a dependência do exterior e contribuem para a economia local: o cimento, principal componente do betão, conduz a poupanças ambientais e económicas significativas, é essencial para a construção sustentável e representa um contributo importante rumo à transição para um ecossistema da construção verde e digital”.
Já Aline Guerreiro, CEO do Portal da Construção Sustentável (PCS) faz um retrato pouco animador: “É um setor que deixa muito a desejar em termos de qualidade construtiva”. O facto de, em Portugal, as construções terem geralmente um tempo de garantia muito curto, faz com que se construa com “maus materiais” ou com “soluções construtivas desadequadas”, pois as “verdadeiras patologias” surgem entre os cinco e os dez anos: “Estas (más) opções não são visíveis para quem vai comprar, uma vez que o público que compra nada percebe de construção e interessa-se sempre pelos materiais de acabamento e pela banheira de hidromassagem”, lamenta. Por outro lado, a inflação de preços também não ajuda: “Vê-se cada vez mais no mercado casas a 600 mil euros, que são completamente dispares do rendimento médio anual da família comum portuguesa”. Para Aline Guerreiro, o impacto da pandemia não vai ser para já visível, mas, no longo prazo, a “discrepância entre a capacidade financeira das famílias e os valores de mercado praticados na oferta para habitação própria” vão aumentar.
Apesar de ser uma “constatação” que as quebras doutros setores não chegaram à construção, José Neves, representante Sto Ibéria em Portugal, evidencia a “grande resiliência” das empresas do setor: “Imagine-se o que foi manter um projeto em funcionamento, muitos deles com mais de 100 pessoas e aplicar as regras Covid? São espantosos o sacrifício e a flexibilidade que foram necessários para tal”. O responsável acredita que desafios da escassez de matérias-primas ou dos recursos humanos podem mesmo acelerar a necessidade de se executar mais projetos com sustentabilidade: “A escassez das matérias-primas que se tem verificado enquadra-se mais em produtos que tem uma forte pegada ecológica na sua composição ou no seu método de fabrico”. Quanto à mão-de-obra, José Neves acredita que as adversidades se transformam em oportunidades de qualificação e valorização dos recursos humanos existentes e dos que podem vir para o setor, acrescentando que “perdemos muito da nossa força operária para o estrangeiro”.
“Um retrato positivo”. É assim que Manuel Reis Campos, presidente da AICCOPN (Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas), olha para a construção em Portugal: “A sua resiliência e esforço tem dado um imprescindível contributo para a retoma, neste momento particularmente difícil”. Se, em 2021, a produção do setor cresceu 4,3%, para 2022, as previsões são de 5,5%: “É o resultado da esperada evolução favorável do investimento, público e privado, apostando em domínios como a transição climática e digital e a resiliência, elementos centrais na Estratégia Europeia de Recuperação e Resiliência”. Mesmo com a atividade da construção a não ter estado sujeita aos constrangimentos da pandemia, Manuel Reis Campos não deixa de lembrar os “momentos mais críticos”, onde o setor continuou a assegurar “a construção das infraestruturas, o funcionamento dos edifícios e das redes”, representando um “importante contributo positivo para toda a economia”.
Quem corrobora com a mesma ideia é Joana Luís, arquiteta de interiores, que parece não ter dúvidas sobre a “força económica” da construção no país: “Com a pandemia, a previsão seria o enfraquecimento do setor, algo que não se verificou”. Contudo, a “subida abruta dos custos dos materiais e a escassez de mão-de-obra” face ao ritmo de crescimento é uma preocupação: “E a tendência é prolongar-se para 2022”. No entender de Joana Luís, o crescimento do setor deve-se, essencialmente, ao confinamento provocado pela pandemia: “As pessoas começaram a olhar mais para as casas e a perceber onde deveria estar o verdadeiro investimento”. Mesmo tratando-se de uma “força económica”, a arquiteta de interiores reconhece que a construção sustentável ainda enfrenta alguma “inércia” no país: “Uma vez que a construção sustentável ainda representa um aumento de preço, leva a que quem construa para venda perca o interesse”.
A inércia que persiste na chamada “construção sustentável” é também reconhecida por Ricardo Camacho, arquiteto e coordenador da Comissão Técnica de Sustentabilidade da Ordem dos Arquitetos: “A construção civil em Portugal continua a ser o setor menos preparado para responder aos desafios sociais, do clima, da descarbonização e da preservação da biodiversidade”. E as implicações da atividade deste setor que representam “70% do uso de matéria-prima”, é “responsável por 30% dos resíduos produzidos” e “40% das emissões atmosférica”, é algo que também não é reconhecido pelo setor. Para Ricardo Camacho, as grandes soluções parecem estar na “produção e uso eficiente de energia, reconversão do setor dos materiais de construção e na formação de mão-de-obra qualificada”.
[blockquote style=”1″]O que é uma construção sustentável?[/blockquote]
Tal como em muitos setores, também a construção tem sabido acompanhar as tendências em matéria de energia e clima. Quem o diz é o presidente da ATIC, destacando que também a versatilidade, a durabilidade e a reduzida manutenção do betão representam um “contributo significativo” para a sustentabilidade. E quando se fala em evolução, Otmar Hubscher acredita que os próximos 10 anos serão de “profunda transformação”, sendo imprescindível uma “abordagem de ciclo de vida ao ambiente construído” que valorize a “eficiência energética”, a “neutralidade carbónica” e a “circularidade” em todas as fases dos edifícios e infraestruturas, acrescentando que a digitalização da construção será, igualmente, decisiva para os edifícios inteligentes e para as redes de “smart cities” do futuro.
Por seu turno, a CEO do PCS não parece concordar com a mudança de “mindset”, lamentando o facto de continuar o mesmo de há 10 anos: “Continua a ser construir para vender e ganhar muito dinheiro com isso. A qualidade construtiva não é prioridade”. Além disso, muitas empresas de construção aproveitam-se da palavra “sustentabilidade para vender: Como a maioria das pessoas não sabe, acha que está a construir ou adquirir uma casa sustentável, quando esta terá consumos de energia e outros recursos exorbitantes”. Para Aline Guerreiro, uma construção sustentável implica “construir a pensar no ciclo de vida do edifício, poupando e otimizando recursos em todas as fases, desde o estudo prévio até à sua desconstrução”.
Já o representante da Sto Ibéria em Portugal defende que a construção sustentável deveria ser “condição essencial” para quem vai construir ou reabilitar. Para José Neves, é “inconcebível” que não exista uma “legislação” que proíba a construção de edifícios que consomem uma enormidade de recursos naturais: “Não é um capricho ou uma vaidade, é uma necessidade emergente que já se manifestou há muito tempo”. A construção sustentável resume-se, assim, à única forma possível de construir algo, sendo certo que há um futuro risonho pela frente: “É uma construção consciente e é imperativo atribuir selos de sustentabilidade aos nossos edifícios, um pouco parecido com o que já se tem vindo a fazer com os produtos”.
A preocupação com a sustentabilidade e a implementação de soluções eficientes são uma das alterações mais significativas do setor na última década: “O que falta é apoiar a capacitação das empresas e a qualificação dos recursos humanos, de forma que estas se possam posicionar de forma competitiva”. Para o presidente da AICCOPN, o setor da construção vai continuar a desempenhar um papel determinante na economia e, fruto de uma transformação que já se encontra em curso, se espera alargada à generalidade das empresas: “Será uma atividade mais moderna, com incorporação de maiores níveis de tecnologia e de informação e, consequentemente, com uma maior atratividade e mais inclusiva”. Manuel Reis Campos olha para construção sustentável como algo que está assente em “princípios de eficiência”, de “respeito pelo ambiente” e tendo em conta todo o “ciclo de vida dos edifícios”.
Pensar no ciclo de vida de cada edifício, gerando poupanças energéticas ou na reabitação em vez da construção é algo que Joana Luís considera ser fundamental quando se perspetiva o futuro do setor: “Espero que venha a ser uma exigência do comprador, penso que é aí que estará a grande mudança”. Para a arquiteta de interiores, só existe construção sustentável se houver “mão-de-obra qualificada, matérias primas eficientes, otimização de recursos e menos produção de resíduos” no processo construtivo. Já na vertente de utilizador, a construção sustentável traduz-se em “habitação mais confortável, com poupanças energéticas e um ciclo maior de vida do imóvel”, algo que se reflete numa “poupança económica”.
Passados 10 anos, Ricardo Camacho constata que falta o setor confiar mais nos arquitetos: “Serão fundamentais na objetividade com que podemos participar desta economia circular e desenhar soluções de adaptação às alterações climáticas, sem perdermos o valor da paisagem, a cultura do lugar e a herança da história”. A necessidade de “utilizar materiais locais, de fontes próximas” e o “recurso a tecnologias relacionadas com a cultura e capacidade da região” poderão ser impulsores de oportunidades profissionais. Sobre o que é a construção sustentável, Ricardo Camacho constata que falta ainda muita informação: “é urgente o reconhecimento entre os pares da construção e da política e o envolvimento de toda a comunidade para uma discussão alargada dos meios que definem e condicionam as boas práticas ambientais e sociais”.
Este artigo foi incluído na edição 92 da Ambiente Magazine