Por: Pedro Prata, Executive Director na Rewilding Portugal
O fogo rural na contemporaneadade lusitana é um flagelo de frequência estival. Quando as chamas são televisionadas atiçam as mais dispares reações da opinião pública, desde comentadores e políticos a uma miríade de conservacionistas/populistas de ocasião. Contudo, o discurso, embora inflamado, raramente se reveste de ideias transformadoras com potencial de alterar a fatalidade que testemunhamos há décadas – um aumento progressivo da área ardida, das suas consequências socioeconómicas, e da degradação ambiental com consequências negativas para a biodiversidade.
Depois do ardido, ao poder político cabe o papel de lamentar e prometer mais meios humanos e mecânicos seja no combate às chamas seja na prevenção. As ideias repetem-se há décadas, mais aviões, mais financiamento para as corporações de bombeiros, um plano nacional de fogo controlado, as eternas “cabras sapadoras” que mesmo sendo financiadas raramente “pastam os montes”. Aos comentadores de ocasião, cabe o papel de criticar o falhanço governativo, e repetem também as receitas de sempre, como por exemplo o voltar ao antigamente com o mundo rural pejado de gente a cultivar e pastorear os montes. Para isso temos que “comer mais cabritos” como nos tempos em que a eletricidade, o gás, o gasóleo e até os acessos mantinham uma camada social num realidade remanescente da idade média. Já testemunhamos até um direto em frente às chamas com alguém no auge do seu desespero lançar um “no tempo do Salazar, não ardia assim”.
Assim que arrefece o tempo e voltam as chuvas, este problema torna-se rapidamente uma memória, como se já tivesse passado, e não se altera nada até ao verão quente seguinte. Sobre esta triste realidade falta uma verdadeira reflexão e intenção de atacar o problema pela raíz de modo a que o futuro não seja o mesmo murmúrio de cinzas que nos marcam os verões há demasiado tempo.
São já vários os verões quentes em que tenho publicado recomendações sobre o que fazer, não apenas no rescaldo da tragédia, mas acima de tudo o que se deve fazer a longo prazo e de forma alterar o paradigma permanentemente.
Na raíz das ignições com frequências artificialmente anormais neste pais, está a permissão com que estas acontecem. Noventa e muitos por cento das ignições são de origem humana, seja acidental ou intencional. A consequência é idêntica, ou seja nada acontece mas o propósito pelo que se iniciou o fogo é alcançado. Seja por disputas de vizinhos, disputas cinegéticas, intenção de alterar o uso do solo, adquirir madeira mais barata, ou simplesmente abrir pastos para pequenos ruminantes – depois do fogo, quem o iniciou vê as suas ambições atingidas, sem que lhe aconteça nada. Seria fácil, do ponto de vista legal, impedir que isto acontecesse. Uma moratória após incêndio que impedisse de se auferir dos ganhos por via da terra queimada em alterações ao uso do solo, remoção de madeira e impossibilidade de pastorear por pelo menos 10 anos, desincentivaria uma parte de leão das ocorrências.
Acerca da intensidade ligada ao período em que a maioria dos incêndios rurais ocorrem e a sua progressiva gravidade ligada a alterações climáticas no verão e frequência de fenómenos extremos, a prevenção tem que ser aliada da capacidade de resiliência intrínseca da natureza. As florestas e os matos que ardem são ecossistemas incompletos, devido a décadas de ação humana. Sem elementos chave presentes como os grandes herbívoros, cada ano sem arder soma combustível disponível para os incêndios que virão.
Ao invés de arrogarmos sermos capazes de gerir todo o país com remoção mecânica de biomassa ou fogo controlado, porque não dar a oportunidade, no tempo e no espaço, para que os verdadeiros consumidores de biomassa fina com que estes ecossistemas co-evoluiram fizessem o seu trabalho? Seria interessante ver os resultados de termos boas abundâncias de grandes herbívoros, como veados, cabras montesas e cavalos e bovinos assilvestrados. Os benefícios seriam múltiplos, desde reduzir a intensidade e extensão dos incêndios, a voltarmos a ter florestas climáxicas ricas em vida selvagem em Portugal.
Paralelamente, é importante criar descontinuidades nos cobertos vegetais para ajudar a travar os incêndios. Felizmente, existe um engenheiro de ecossistemas que o pode fazer de modo gratuito trabalhando sem parar todo o ano, alargando as zonas húmidas e represando os cursos de água para criar essas barreiras – o castor. Se apostarmos nesta solução de base natural, todas as alternativas que visam construir mais estruturas como os açudes e barragens, ou gerir o ambiente através de meios mecânicos (como os corta fogos e as faixas de remoção de biomassa) se tornariam redundantes e dispendiosas.
Portugal é um pais médio (não é pequeno), muito mal ordenado, e com pouca visão a longo prazo. Apesar disso, existem áreas suficientes e oportunidades para pelo menos se testar esta abordagem, sem comprometer outros valores, dando um contributo para se melhorarem os índices de preservação do capital natural e reduzir a permanente tragicomédia que os incêndios se tornaram. Haja vontade, que o tempo já escasseia.
Este artigo foi incluído na edição 101 da Ambiente Magazine