Esta é uma segunda parte da Grande Entrevista de Francisco Machado, presidente da AEPSA – – Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente, à Edição Nº 72 da Ambiente Magazine. Aqui o responsável fala-nos sobre a temática dos resíduos, contando com o contributo de Carlos Raimundo, assessor da Direção da AEPSA, para dar a sua visão mais detalhada sobre esta área.
No setor dos resíduos, quais os temas que mais preocupam a AEPSA?
Francisco Machado – Um dos temas tem a ver com a traçabilidade dos resíduos, a forma como são recolhidos, transportados e depositados. Até ao fim do ano será feito através das GAR em papel, a partir daí começará a ser feito através das GAR electrónicas, que começarão em fase de teste em julho deste ano. A APA (Agência Portuguesa do Ambiente) está a concretizar esse projeto. Isso indica que todos os operadores vão ser obrigados a registar eletronicamente os resíduos que transportam. Este é um aspeto que a AEPSA considera fundamental para o desenvolvimento e regulamentação do setor. Consideramos que esta nova realidade vai trazer uma clarificação muito significativa ao mercado, uma nova dinâmica e uma outra transparência que irá permitir outra concorrência.
O segundo tema que também temos vindo a defender tem a ver com a regulamentação do desempenho de atividades complementares nos sistemas multimunicipais tanto da EGF como dos restantes municípios que hoje em dia acabam por recolher nos seus sistemas, que foram dimensionados para sistemas domésticos, resíduos que não são verdadeiramente domésticos. São resíduos produzidos pelas grandes superfícies, indústria, recolhidos como resíduos domésticos urbanos. Temos andado a pugnar para que essas atividades, caso sejam desempenhadas pelos sistemas multimunicipais ou intermunicipais, o sejam de uma forma concorrencial. Os preços têm que estar em linha com o setor privado porque existe capacidade instalada e o setor privado foi incentivado para poder tratar desses resíduos industriais banais. Se há sistemas que o querem fazer também, têm de o fazer de modo igual às circunstâncias dos privados, não o podem fazer usando infra-estruturas que foram subsidiadas e praticando dessa forma preços muito mais vantajosos.
Carlos Raimundo – A traçabilidade dos resíduos é uma reivindicação nossa de há muitos anos, porque visa essencialmente garantir uma concorrência leal. Visa que uma parte significativa dos resíduos não se esfume, sem ninguém perceber bem para onde vão. Um dos problemas que nos tem acompanhado ao longo dos anos, e que pensamos que será mitigado com a entrada em funcionamento em julho, em período experimental, com entrada definitiva em vigor a 1 de janeiro de 2017, do Registo Eletrónico de Resíduos, através da E-GAR, que nos permite de facto, a pouco e pouco, atingir esse patamar de igualdade de procedimentos.
Também temos pugnado pela separação das diversas topologias de resíduos. Uma coisa é a atividade regulada, que tem inclusive uma entidade reguladora (ERSAR), que é a dos Resíduos Sólidos Urbanos, os resíduos domésticos. Para além de ser regulada beneficiou de financiamentos públicos quer comunitários quer nacionais, e também de financiamento bonificados do BEI. Essa atividade regulada não pode estar a competir em pé de igualdade com uma atividade livre, que é a atividade dos resíduos não urbanos, do grande comércio e da indústria. Atualmente há uma grande confusão. Se uma determinada empresa entregar os seus resíduos a um município não precisa de preencher uma GAR, sendo que esse resíduo não fica registado e é misturado com os Resíduos Urbanos como se de lixo doméstico se se tratasse. Os estudos feitos em Portugal, nomeadamente para justificar alguns investimentos públicos e privados, estão todos defraudados porque se basearam em estimativas de quantidades de resíduos industriais perigosos e resíduos industriais não perigosos que não aparecem. Mas eles existem.
Por isso, uma reivindicação já de há muitos anos e que queremos atingir é a clara separação entre o que são resíduos domésticos, atividade regulada, e todos os outros resíduos (industriais perigosos ou não perigosos), atividade liberalizada. Com este Registo Eletrónico de Resíduos através da E-GAR vai ser dado o primeiro passo significativo para se atingir o objetivo. Por si só ele não vai resolver o problema, mas vai ser uma ferramenta importante para continuarmos nesse caminho.
Outra das nossas batalhas é a da taxa de gestão de resíduos, que se pensa que vai ser alterada. Até aqui a taxa de gestão de resíduos é determinada em função do processo. Se um determinado sistema de tratamento tem só um aterro sanitário os resíduos que entram lá pagam a taxa máxima. Se por acaso um sistema para além de aterro tem também uma unidade de compostagem, então paga uma taxa mais moderada. Mas este modelo não incentiva nada. O grande objetivo das metas do país e comunitárias é tender para o resíduo zero em aterro. O caminho está traçado, mas entendemos que a taxa de gestão de resíduos deve ser completamente alterada por forma a constituir um verdadeiro instrumento da gestão de resíduos e de incentivo a se atingir esses objetivos. Já apresentámos inclusivamente uma proposta genérica, que não está trabalhada no pormenor. No nosso entender a taxa de gestão de resíduos deveria funcionar de outro modo, à partida toda a produção de resíduos pagava uma taxa única e elevada, em função dos processamentos obtidos em cada elo da cadeia de valor. Por exemplo, se um produtor entregar os resíduos em bruto paga a taxa máxima, mas se implementar medidas de seleção de resíduos, de triagem interna, beneficiaria de descontos sobre a taxa. Os processos tendentes à minimização dos resíduos e sua valorização iriam sendo valorizados ao longo da cadeia de valores com menor valor da taxa.
Esta taxa deve ser um instrumento de gestão. Esta proposta é uma alteração estrutural que ainda está longe de ser conseguida, mas para a qual temos alertado os vários responsáveis.
Relativamente às metas de reciclagem para 2020, são exequíveis?
FM – Não sei se serão atingíveis ou não em 2020. Sei que vai implicar mudanças significativas no funcionamento do mercado e no financiamento desse próprio mercado. À partida terão que surgir pacotes financeiros de acordo com metas a atingir. Esta situação irá implicar negociações entre os Estados que fazem parte da União Europeia. Por outro lado, os instrumentos de gestão que falámos anteriormente, são igualmente fundamentais; temos de ser mais ambiciosos na aplicação da Taxa de Gestão de Resíduos.
Finalmente terá que haver algumas mudanças estruturais na forma como o mercado funciona, por exemplo, a permissão para que o setor privado possa intervir na recolha dos resíduos urbanos que está exclusivamente adstrita ao setor municipal, quanto a nós sem grande fundamento, portanto inibidora de uma reciclagem mais eficiente. Deveria haver uma permissão mais liberal dos privados no sistema da recolha seletiva.
O que pensa a AEPSA do novo SIGRE (Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens)?
CR – A versão apresentada pelo Governo é substancialmente diferente da versão finalizada pelo anterior Governo. É profundamente diferente em diversos aspetos. Este novo SIGRE desresponsabiliza a indústria nacional. Esta é uma das grandes alterações.
A segunda grande alteração é que este SIGRE fica restringido às embalagens de origem doméstica, ao contrário do atual, que englobava embalagens industriais. Sendo assim, neste ponto, esta regulamentação faz o que a AEPSA tem defendido, garantindo a separação entre o que é resíduo doméstico, ao nível da embalagem, dos outros resíduos.
A terceira questão prende-se com passar a haver concorrência no SIGRE, aí também não nos pronunciamos sobre isso. Genericamente pensamos que a concorrência é sempre benéfica face aos monopólios.
Há uma outra questão, que nos preocupa, que surgiu no projeto do anterior Governo e que agora surgiu nesta versão, que é incluir no âmbito do SIGRE as embalagens provenientes dos TMB’s (Tratamentos Mecânico Biológicos). Isso preocupa-nos na medida em que vai contribuir fortemente para uma perda de qualidade dos materiais reciclados. Ao incorporar estes resíduos na mesma linha de processamento e de incentivo, está-se a desincentivar a grande aposta dos diversos agentes da recolha seletiva propriamente dita. Isso vai contribuir para a desvalorização e qualidade dos materiais, e isso preocupa-nos, apesar de não termos nesta fase uma posição bem definida. Consideramos que este último aspeto é um incentivo à não qualidade que, a prazo, poderá tender para um aligeiramento das apostas na recolha seletiva.
Portugal deveria apostar muito mais na recolha seletiva porta-a-porta à semelhança do que alguns dos municípios estão a fazer, Maia e Lisboa, que é a única forma de aumentar as quantidades da recolha seletiva, que têm vindo a diminuir ou a estagnar nos últimos anos. Este sistema que está implementado na generalidade do país, os ecopontos, já não consegue fazer mais. Para se atingir as metas é preciso criar-se outros processos e outros processos passam por apostar mais na recolha seletiva porta-a-porta e para isso tem que haver incentivos. Ora, com a introdução da possibilidade dos materiais dos TMB’s serem remunerados de forma idêntica aos provenientes da recolha seletiva, isto é um desincentivo a que os municípios apostem na recolha seletiva porta-a-porta.
Depois, pensamos que os privados deveriam ser envolvidos no atingir dessas metas. Deveria ser permitido e incentivado que os privados organizassem recolhas seletivas, e isso não está a acontecer.
A nível europeu, o Parlamento Europeu publicou uma proposta de legislação sobre resíduos em junho, propondo o aumento da meta para 70% até 2030. Como vê esta proposta?
FM – Será mais fácil aos países do Norte da Europa atingir essas metas do que para nós. Podemos caminhar nesse sentido mas precisamos do respetivo pacote financeiro. As novas metas são boas notícias em termos de mercado potencial, que traz novas oportunidades e desafios, agora tem de haver dinheiro para se implementar as soluções. Enquanto operadores privados interessa-nos que haja novas oportunidades, estamos é preocupados de onde virá o financiamento. Sobretudo o setor privado tem de ser envolvido na concretização destas novas metas, não se pense que o setor público sozinho vai ser responsável.
O Governo já referiu que a fiscalização sobre resíduos perigosos vai ser reforçada. A AEPSA vê com bons olhos esta medida?
Sim, claramente. Sabe-se que há algumas questões que são menos claras na forma como estes resíduos têm sido geridos. Tudo o que sejam medidas que venham clarificar a forma como essa gestão é feita e permitam fazer uma traçabilidade adequada do percurso desses resíduos e da forma como eles sejam traçados, é positivo. Vemos com bons olhos e temos vindo a lutar para que isso seja feito dessa forma.