Depois de um mês de abril com recordes de temperatura máxima, o Governo já declarou situação de seca em 40% do território nacional. A esta situação acresce que Portugal está entre os países que mais vai sofrer com a falta de água. Já são muitos os investigadores a alertar para a necessidade e urgência de um consumo mais sustentável.
No meio de tantos alertas, será que a falta de água pode vir a ser a próxima crise europeia?
Por: Pedro Perdigão, CEO do Grupo INDAQUA
O que é que significa estar 40% do território nacional em seca?
Significa que as altas temperaturas e os baixos níveis de precipitação e de água disponível no solo verificados nos últimos meses, em cerca de metade do território nacional, nos coloca, nesses territórios, num dos dois níveis mais graves de seca: seca severa e seca extrema.
Nessas regiões as disponibilidades hídricas naturais são extremamente baixas, o que pode representar, quando não existem reservas e existem consumidores, graves problemas de escassez.
O problema nunca é a seca. O problema é sempre a escassez.
Como é que se explica uma situação de seca em 40% do território nacional no mês de maio?
A questão não é tanto termos 40% do território em seca severa ou extrema, é antes que estes fenómenos se estão a tornar cada vez mais frequentes. E este aumento de frequência não tem qualquer surpresa. É exatamente o que se esperava e era previsto pelos meteorologistas como consequência das alterações climáticas. Além de secas mais frequentes e prolongadas teremos o reverso da medalha – fenómenos de precipitação intensa e concentrada também mais frequentes.
Se mesmo sem as alterações climáticas já era urgente, há décadas, lidar com o problema da escassez de recursos hídricos, estes fenómenos vieram tornar essa urgência ainda mais evidente.
Como lidar então com a escassez? Há sempre dois caminhos que podem ser trilhados em simultâneo: aumentar a oferta ou reduzir o consumo.
Aumentar a oferta implica sempre fortes investimentos (como, por exemplo, barragens, reutilização de águas residuais ou dessalinizadoras), que serão eles próprios geradores de impacto ambiental (veja-se o caso particular do tratamento da água do mar que implica elevados consumos energéticos e as emissões de CO2 associadas).
Reduzir o consumo pode também ser conseguido por duas vias: redução do consumo real, o que impacta no nosso conforto (por exemplo deixar de ter jardins com determinadas espécies de plantas) ou redução do desperdício.
Como facilmente se percebe, a forma de atuar prioritária, quer por ser a mais económica, quer por ser melhor do ponto de vista ambiental, quer por não causar qualquer desconforto é, sempre, a redução do desperdício: por parte de quem utiliza a água ou por parte de quem a transporta até ao utilizador.
Nesta vertente do desperdício, o que vemos, desde sempre, é o foco no desperdício do utilizador (duches mais curtos, fechar a torneira quando se lava os dentes, usar rega gota a gota) o que, não deixando de ser importante, serve para nos desfocar do desperdício a montante desses utilizadores.
No caso do abastecimento de água para consumo humano, o problema da escassez está, evidentemente, no desperdício de água nas redes de distribuição. Note-se que, desde que existem dados públicos o valor de água não faturada (onde se incluem as perdas reais e comerciais), se mantém constante num valor assombroso de 30% – mais de 200 mil milhões de litros de água por ano.
Como é que se prepara um país como Portugal para dar resposta a um desafio desta envergadura?
A INDAQUA, enquanto uma das maiores entidades gestoras de abastecimento de água, tem defendido e procurado dar o exemplo no sentido de o próprio setor da água responder a este desafio.
Isto porque, apesar de ser um setor com uma enorme responsabilidade na gestão da água, continua a desperdiçá-la sem que daí se gerem dividendos ou consequências.
De forma a enquadrar a dimensão do problema, diga-se que, se as mais de 250 entidades gestoras portuguesas garantissem um nível de eficiência semelhante à média das concessões INDAQUA, o país pouparia 135 mil milhões de litros de água por ano, o suficiente para abastecer Portugal continental durante três meses.
É essencial agir no sentido de minimizar estas perdas, tornando os sistemas de abastecimento mais eficientes e, por consequência, resilientes em situações de escassez e seca. Não resolverá a globalidade do problema, porém, é no mínimo lógico (e, no máximo, mandatório) que o setor da água dê definitivamente este passo, sendo igualmente necessário um maior controlo, responsabilização e penalização das entidades incumpridoras, isto é, com maior volume de perdas.
Quando é que o cidadão vai dar o devido valor à água? E até lá, o que pode fazer?
O mais imediato seria dizer “quando esta escassear ao abrir a torneira”, mas o trabalho de todos – entidades governamentais, entidades gestoras e consumidores – tem de ser feito muito antes de arriscarmos, no curto prazo, chegar a esse ponto.
Acredito que há ainda um grande caminho de sensibilização a fazer junto do consumidor e da opinião pública, que vai além da promoção do uso responsável da água. Na INDAQUA, temos percorrido este caminho, procurando que o consumidor compreenda o valor – e não apenas o custo – que a água tem.
Falamos de um recurso disponível 24/7, que exige recursos humanos, técnicos e tecnológicos quase incontáveis, durante todo o ciclo urbano da água, e um investimento (que devia ser) contínuo por parte das entidades gestoras. Este trabalho ininterrupto tem de ser valorizado e também cobrado, de forma clara e justa, ao consumidor.
Medidas como as que foram tomadas pela França podem e devem ser replicadas em Portugal? Porquê?
Por cá, já vimos algumas medidas semelhantes postas em prática, mas a nível público/administrativo. Por exemplo, em 2022, alguns municípios decidiram encerrar as suas piscinas municipais ou reduzir os seus sistemas de rega.
O que está a acontecer em França vai mais longe e proíbe diretamente aos consumidores alguns consumos supérfluos de água, como a lavagem de carros, rega de jardins e enchimento de piscinas, em regiões mais afetadas pela seca.
Compreendo as medidas – que, sem dúvida, são úteis em situações de emergência, que necessitam de uma resposta imediata. Contudo, estas denotam, uma vez mais, que estão a ser encontradas medidas temporárias que ajudam a contornar o problema, mas que não contribuem, de forma estratégia, para a sua resolução, acautelando os próximos anos.
Para além disso, este tipo de medidas proibitivas deixa também exposta a forma como a questão da água ainda é vista: como um problema que está centrado no consumidor.
É imprescindível que a sensibilização para o consumo parcimonioso de água e para a sua valorização enquanto recurso escasso seja uma realidade – e não apenas no verão ou só de acordo com proibições! Contudo, não pode pôr-se o ónus da resolução do problema no consumidor, quando existem vários setores – incluindo, o setor da água – que ainda não fazem um consumo responsável da água.
Por cá, o Ministro do Ambiente e da Ação Climática indicou que não pretendia “introduzir uma cultura de proibição quando ela ainda não é necessária”. Parece-me, pelo exposto, o mais acertado, de momento.
A agricultura e o turismo são mesmo os setores que consomem mais água ou é trata-se de uma “acusação” sem fundamento?
Os dados mais recentes da Agência Europeia do Ambiente, apesar de serem de 2017, dão-nos pistas importantes sobre esta questão. Neste ano e a nível europeu, 58,3% do consumo de água era feito pelo setor da agricultura, silvicultura e pesca.
O Plano Nacional da Água é ainda mais antigo e mostra-nos dados sobre a realidade portuguesa em 2015. Nessa altura, 74,7% da utilização da água era feita pela agricultura e pecuária. Já o Turismo aparecia com 0,7% do consumo.
Claro que a atividade turística se intensificou bastante, desde estes anos, e tem de ser tida em conta enquanto consumidora relevante. Contudo, é factual que a agricultura é a principal atividade consumidora.
Como tornar estes setores mais despertos para o problema?
Acredito que, à semelhança do que referi em relação ao setor da água: com um maior controlo e penalização das empresas, neste caso, não pelas perdas, mas pelos consumos, para os quais é necessário definir critérios.
A água pode vir mesmo a ser a próxima crise europeia?
Não só europeia como mundial. Se nada for feito, tendo em vista uma utilização estratégica da água disponível para consumo humano, as questões da água vão agravar-se e passarão, rapidamente, de desafios a problemas sem margem de retrocesso.