O presidente da Parceria Portuguesa para a Água (PPA), Francisco Nunes Correia, explicou, em entrevista à Ambiente Magazine, quais os objetivos e principais atividades desenvolvidas pela Parceria desde 2011. No que toca aos desafios da gestão da água em Portugal, Francisco Nunes Correia destaca a falta de atenção que é dada aos recursos hídricos, afirmando existe um problema de “governança clássico” que “é a relação harmoniosa ou de conflito entre o espaço físico e o espaço das estruturas político-administrativas”.
A Parceria Portuguesa para a Água foi criada em 2011. Com que objetivos?
A ideia de criar a parceria aparece mais cedo, surge em 2009 quando Portugal teve uma presença muito importante no Fórum Mundial da Água que teve lugar em Istambul, nesse ano. Foram mobilizados muitas pessoas, alguns recursos e a presença de portuguesa foi muito forte e interessante. Participaram perto de cem especialistas, vindos de vários organismos da administração pública, de universidades, câmaras municipais e empresas. Na altura eu estava em funções ministeriais e pareceu-me interessante, face à importância que o setor tem em Portugal, desenvolver iniciativas que projetassem o mais possível este setor a nível nacional e internacional. Quando tudo isso acabou colocou-se a questão: o que fazer desta mobilização e desta capacidade de colaboração entre entidades tão distintas? Olhando para a Europa, verificámos que havia já algumas parcerias para a água em vários países europeus, como na Alemanha, Holanda e França e pensámos assim criar uma Parceria Portuguesa para a Água.
Lançou-se um grupo de trabalho para estudar o que essas parcerias faziam. Entretanto eu saí do governo, em outubro de 2009 e a minha sucessora no Ministério do Ambiente, a engenheira Dulce Pássaro, deu continuidade ao projeto e em 2010 convidou-me para presidir a uma comissão instaladora. Fui apanhado de surpresa, mas fiquei encantando com a possibilidade de poder dar continuidade a esta ideia. A escritura de criação formal da parceria foi feita em junho de 2011, quase coincidindo com a mudança de governo. Apresentámos o projeto ao novo governo e recebemos da parte da então ministra Assunção Cristas um grande encorajamento para prosseguirmos.
Qual a missão da PPA?
O grande foco e objetivo da parceria, que representa 80 a 90% da nossa atividade, é ao serviço da internacionalização do setor português da água. Acreditamos que este setor em Portugal conseguiu uma notoriedade bastante grande com os muitos sucessos (e alguns insucessos) que nos ensinaram muito, fazendo com que Portugal tenha ganho nestes últimos anos uma grande experiência, disseminada por entidades publicas, empresas privadas, entidades gestoras, universidades e associações profissionais. Há um tecido bastante especializado no domínio da água, já com uma considerável capacidade de internacionalização e, portanto, a PPA tem como grande desígnio potenciar essa capacidade.
Será realista dizer que Portugal poderia multiplicar, daqui a cinco/10 anos, a sua presença no mundo no setor da água?
Acredito que sim. A crise que se instalou em Portugal levou as empresas a serem mais ousadas, a darem mais atenção mais à componente internacional. O grande problema que existe é um problema de escala. Muitas das empresas portuguesas têm uma escala muito pequena e a internacionalização “à séria” é um processo caro, tem de haver um grande primeiro investimento, as empresas têm de se instalar nos mercados e estabelecer uma rede de contactos e isso é muito caro. É claro que há algumas empresas portuguesas de maior dimensão que conseguiram esse processo, mas são poucas. Esta questão remete para o que nós por vezes chamamos a estratégia do «porta aviões».O que defendemos é que as empresas mais pequenas, algumas delas de tecnologia muito sofisticada e reconhecida, têm que se associar a outras empresas maiores. Se forem portuguesas tanto melhor, se forem estrangeiras tudo bem, um dia poderão ser portuguesas. Trata-se, portanto, de procurar consórcios para poder participar e colaborar com empresas maiores, porventura internacionais, com maior capacidade de acederam aos mercados globais, a que chamamos «porta aviões».
Qual o balanço que faz da atividade da associação até à data?
Faço um balanço positivo. Há muitas atividades que temos desenvolvido de forma continuada. Uma das mais importantes, e que os associados valorizam muito, é a divulgação periódica de oportunidades nos mercados internacionais. Ou seja, a Parceria Portuguesa para a Água acompanha tudo o que são concursos, lançados diretamente pelas instituições financeiras internacionais ou pelos vários países. Em alguns casos, embora raramente, ajudamos os associados a consorciarem-se para poder acorrer a essas oportunidades. Acompanhamos também por dentro algumas das iniciativas que são feitas, sobretudo a nível europeu, que são muito relevantes para o setor, por exemplo, a European Inovation Partnership on Water, criada há cerca de dois anos pela Comissão Europeia; a Water Governance Iniciative, criada pela OCDE; a Water Supply and Sanitation Technology Platform. São coisas muito importantes para Portugal, para que não fiquemos esquecidos lá no fundo da Europa e estejamos em plena sintonia com o mundo. Recebemos muitas vezes em colaboração com o Ministério, delegações que vêm a Portugal, desde a China à Albânia, passando pela Alemanha, explicando como é o setor português da água e ajudamos a organizar visitas a empresas e a instalações. Temos contribuído para assegurar também a presença de Portugal nos World Water Foruns, os maiores eventos dedicados ao setor, dando a conhecer o que se faz no nosso País.
No que respeita aos países da CPLP foi, recentemente, aprovada a vossa candidatura no âmbito do Portugal 2020 para a criação de uma plataforma que visa discutir oportunidades relativas à transferência de conhecimento e capacitação técnica entre instituições do mundo da água nos países de língua portuguesa. Qual a importância deste projeto?
Não posso deixar de falar de dois projetos que apresentámos ao COMPETE, um já concluído no QREN anterior chamado «Água Global», desenvolvido em colaboração com a Associação Empresarial de Portugal (AEP) que permitiu fazer o levantamento, por um lado, de oito mercados relevantes para as nossas empresas, por outro lado, das capacidades portuguesas para dar resposta às exigência dos mercados internacionais. Neste novo ciclo de fundos comunitários, apresentámos uma candidatura ao Portugal 2020 que foi também bem sucedida. O projeto, que vai ter lugar em 2016/2017, chama-se P3LP – Pontes e Parcerias nos Países de Língua Portuguesa, e é desenvolvido em conjunto com a APEMETA. É muito centrado no setor da água nos PALOP e muito orientado para aquilo que chamamos “missões inversas”, ou seja, trazer dirigentes e quadros qualificados desses países a Portugal para verem como se faz, participarem em ações de capacitação, e desenvolverem laços de relacionamento, o que não é de pouca importância. O projeto inicia-se formalmente com uma sessão agendada para o auditório da AEP em Leça da Palmeira, no próximo dia 29 de março, às 14.30.
Quais os objetivos da PPA a curto e longo prazo?
O grande foco é a internacionalização. Em alguns casos, acompanhamos também de muito perto o macro-ordenamento do setor em Portugal e vamos chamando a atenção do governo para alguns aspetos que nos parecem importantes, ou seja, não descuramos a realidade interna e vamo-nos posicionando em relação a questões relevantes e que sejam bastante consensuais para o setor, como, por exemplo, a forma de utilizar os fundos comunitários. Eu diria, contudo, que 80 a 90% da nossa atividade é dirigida para a internacionalização do setor.
A área dos recursos hídricos acaba por ser a menos falada em Portugal, mas uma das mais importantes para o futuro do país…
Não tenho a mais pequena dúvida e vejo com alguma pena o assunto hoje ser pouco discutido em Portugal. Os recursos hídricos estão por trás de tudo o que são utilizações setoriais e são relevantes de uma forma transversal para todas elas. Quando abrimos a torneira em nossas casas, temos de perceber que aquela água vem de um ponto de captação e, depois de utilizada, é lançada num ponto de rejeição. O uso que fazemos dessa água está em competição com a água para outros usos como a agricultura, a energia, e os próprios ecossistemas. Uma boa gestão da água obriga-nos a ter uma visão global e integrada de todos esses usos e a dirimis conflitos reais ou potenciais entre eles.
Este assunto deveria ser posto em cima da mesa?
Exatamente, essa natureza transversal da água e a forma como ela deve ser gerida é da maior importância, sobretudo de um ponto de vista estratégico. No que se refere à gestão dos recursos hídricos, há um problema de governança clássico e bastante complexo que é a relação harmoniosa ou de conflito entre o espaço físico mais adequado para a gestão, a bacia hidrográfica, e o espaço das estruturas político-administrativas que, como é óbvio, têm uma configuração territorial distinta. Faz sentido que a gestão da água seja feita por espaços geográficos onde as leis da natureza fazem com que uma qualquer ação num dado local tenha consequências num outro local. Isto gera uma “solidariedade objetiva”, ou seja, se eu poluo aqui, a captação a jusante fica afetada. A gestão dos recursos hídricos tem precisamente a ver com essa dimensão dos problemas muito transversal, envolvendo vários usos, e permitindo compatibilizar utilizações diversas, incluindo as dimensões ambientais para que o recurso esteja disponível de forma sustentável. Isto conduz-nos à necessidade de uma gestão por bacia que, aliás, está consagrada a nível internacional como a melhor abordagem. Contudo, por outro lado, temos estruturas político-administrativas, que têm legitimidade democrática e que têm desejavelmente uma palavra a dizer sobre a forma como o recurso deve ser gerido. É necessário compatibilizar estas duas malhas territoriais, a física e a político-administrativa, ou seja, no caso de Portugal, a gestão por bacias com a participação dos municípios e das CCDR’s. Claro que nos Açores e na Madeira a questão não se coloca da mesma forma porque o que faz sentido é a gestão ser feita por ilha e os Governos Regionais têm jurisdição sobre todas elas. Esse é um dos grandes desafios da governança da água em Portugal e em muitos países.
Qual o atual ponto de situação do país no campo dos serviços de água?
Portugal nas últimas décadas deu passos de gigante e os portugueses nem sempre se apercebem disso. Eu sou daqueles que teve o gosto de ter ouvido, em setembro de 2010, em Montreal no Congresso da International Water Associaition (IWA) perante cerca de cinco mil pessoas, o Diretor Executivo desta prestigiada associação internacional, falar no “portuguese miracle”. E isto deve-se, entre outras coisas, ao razoável consenso político que tem existido em torno deste setor, o que infelizmente é raro em Portugal. Há uma reforma de fundo que teve início em 1992/3, era ministra a Dr.ª Teresa Gouveia. Nessa altura foi criada a Águas de Portugal e foram lançadas as primeiras empresas multimunicipais que são, afinal, uma enorme parceria pública-pública que envolve o Estado e cerca de 200 municípios com o objetivo de estruturar o setor da água. Até aos anos 90, este setor estava totalmente fragmentado, havia alguns milhares de sistemas autónomos municipais, ou mesmo a nível de freguesia. A exceção era a EPAL que tinha uma escala considerável, mas tudo o resto era estritamente municipal, sendo que em muitos casos cada município tinha vários pequenos sistemas. Daí até hoje, o essencial destas linhas de orientação manteve-se. Níveis de atendimento que nos anos 90 eram baixíssimos, hoje atingem valores de cerca de 98%, no que diz respeito ao abastecimento de água, e com a qualidade controlada pela ERSAR. No que se refere ao tratamento de efluentes, os nível de atendimento eram da ordem dos 20% e hoje são cerca de 80%. A ERSAR desempenhou neste processo um papel muito importante, por um lado, de autoridade bastante firme perante as entidades gestoras, sendo muito delas municipais, mas ao mesmo tempo uma autoridade que ajudou, fez pedagogia, desenvolveu ações de formação. O governo anterior promoveu fusões de empresas multimunicipais de uma forma que me pareceu muito unilateral, esquecendo que em todos estes sistemas havia co-acionistas, as câmaras municipais, que foram parceiros em todo este processo. Com efeito, a Águas de Portugal têm uma relação de co-acionista com cerca de 200 municípios em Portugal. Na generalidade dos casos, as empresas multimunicipais são empresas regionais para captação e tratamento de água potável que depois os municípios distribuem. No que se refere às águas residuais, os municípios recolhem-nas e conduzem-nas a grandes sistemas de tratamento que também são geridos por empresas multimunicipais. Não devemos esquecer que uma das razões dos imensos progressos feitos em Portugal nos últimos 20 ou 25 anos foi a capacidade de articular dois níveis de poder, o central e o local, criando uma imensa parceria entre eles. É certo que o Estado é maioritário nas empresas multimunicipais, tipicamente com 51% e os municípios com 49%, mas isso não significa que o Estado deva pôr e dispor destas empresas, quer no plano político quer no plano empresarial, ignorando que a chave do sucesso foi precisamente o espírito de parceria. Melhorar a eficiência é legítimo e desejável e sem dúvida que as fusões podem dar um contributo para alcançar esse objetivo. Mas isso não pode e não deve ser feito fora de um razoável consenso com os parceiros municipais.
É uma questão que este governo terá de consensualizar?
É, sem dúvida, e foram já anunciadas algumas medidas. O governo no seu programa era prudente porque não dizia que ia desfazer completamente as empresas que resultaram das fusões, mas dizia que ia rever o processo atendendo aos casos em que os municípios exprimiram grande desacordo. A minha opinião pessoal é que em termos puramente de benchmarketing empresarial, isto é, de eficiência técnico – económica, a fusão pode fazer sentido. Mas é preciso reconhecer que este grande projeto desenvolvido ao longo de mais de 20 anos e que teve resultados tão positivos e reconhecidos internacionalmente não é só é um projeto de eficácia técnico – económica, é acima de tudo um projeto com importantes dimensões políticas, em que o Estado se associou com 200 municípios para construir todo este sistema e fez isso sempre numa base de considerável consenso.
Esta entrevista pode ser lida na íntegra na Edição nº 71 da Ambiente Magazine.