A escassez hídrica é uma realidade em Portugal. Mesmo sendo mais acentuada em algumas zonas, os efeitos que causam são transversais ao país. Por isso, o combate está no topo das agendas políticas e das empresas e autarquias. Mas a escassez não é o único desafio que o setor da água enfrenta: a má gestão, a resiliência, a eficiência ou as perdas de água também preocupam este setor. “O que é que está a ser feito para minimizar estes problemas? E como se perspetiva este setor no futuro?”, foram algumas das perguntas colocadas a vários atores ao longo desta reportagem.
“Há três décadas, os serviços eram muito deficientes, longe das necessidades da sociedade e das exigências das diretivas europeias. E graças à visão de alguns líderes nos anos 90 e ao apoio financeiro europeu, houve duas décadas e meia de grande progresso, com uma reforma do setor e cerca de 13 mil milhões de euros de investimentos, com resultados excelentes. No entanto, nos últimos anos parece termos caído novamente nalguma letargia”. Este é o estado atual do setor da água em Portugal traçado por Jaime Baptista, presidente da LIS-Water, Lisbon Internacional Centre for Water. De acordo com o engenheiro, durante as últimas três décadas, foi possível assistir-se a uma “profunda reforma”, com a “revisão do enquadramento institucional e legislativo, dos modelos de governança e da organização territorial”. Depois, foi criado um “regulador dos serviços” e o “setor foi dividido em sistemas multimunicipais e municipais”, participando o “setor público estatal e municipal e os privados”. Contudo, os últimos anos foram de poucas evoluções, algumas a destacarem-se pela “negativa”, acompanhadas de uma grande fragmentação nos serviços em baixa e da “ineficiência da gestão dos ativos”, que origina o “envelhecimento das infraestruturas e perdas de água”, acrescenta. Para o engenheiro, há uma evidente “falta de comprometimento dos atores”, sendo necessária “melhor eficácia dos comandos legislativos”.
De forma a dar continuidade ao que de melhor se tem vindo a fazer no setor, o Governo decidiu elaborar o novo Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030) para os próximos dez anos e que deverá entrar em breve a consulta pública.: “É um instrumento essencial”, sustenta o engenheiro, sublinhado que o objetivo é o de “alcançar serviços eficazes”, “eficientes” e “sustentáveis”, havendo a “valorização dos serviços”, infraestruturas e do próprio “capital humano”. “Trata-se de um plano ambicioso”, refere.
Questionado sobre a escassez de água e as possíveis soluções, o engenheiro é perentório: “Há que começar por ser mais eficiente no uso de água, assegurando uma redução dos consumos e consequentemente uma maior preservação deste recurso escasso e permitindo, eventualmente, eliminar a necessidade de eventuais novos investimentos em infraestruturas”. Desta forma, é possível “gerir melhor a procura, minimizando a necessidade do reforço da oferta”, assegura. Complementarmente, a aposta deve centrar-se na “procura de origens alternativas”, podendo “combinar água de diferentes caraterísticas para diferentes utilizações ou proceder à mistura de águas para a mesma utilização”. Já sobre as perdas de água, Jaime Baptista atenta na importância de se conseguir a “redução de perdas nos sistemas através de intervenções específicas”, mas também “operacionais”, cuja implementação deve ser precedida de “avaliação técnica e financeira de oportunidade. Há espaço para uma maior aplicação de contratos de redução de perdas de água remunerados em função dos resultados, auditorias à eficiência hídrica das entidades gestoras e sensibilização dos decisores, bem como para premiação e divulgação de casos de referência”.
Sobre o futuro, Jaime Baptista atenta na importância de existirem “serviços de águas de excelência que assegurem eficácia, eficiência e sustentabilidade” e que “criem valor”.
[blockquote style=”1″]Maior envolvimento do setor privado[/blockquote]
Por seu turno, Eduardo Marques, presidente da Direção da AEPSA (Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente), evidencia, face à análise dos relatórios de acompanhamento do PENSAAR 2020, uma “estagnação da maioria dos indicadores de desempenho”. Contudo, quando comparado o desempenho por tipo de modelos de gestão, o engenheiro não tem dúvidas que “o setor privado tem, em geral, melhores indicadores e é o que mais tem contribuído para a (sua) melhoria”. Os tempos de “incerteza e preocupação” e os “fenómenos climáticos extremos” correspondem a uma conjuntura que vai impactar o setor da água. Face a isto, “é prioritária a redefinição da organização do setor, que deverá ser mais direcionada para a eficiência operacional, financeira e ambiental, capaz de reconhecer e promover a adoção das práticas mais adequadas e a promoção da inovação”, sublinha o responsável, acrescentando ser “preciso consubstanciar uma nova visão para a água para que o setor ganhe resiliência para superar os desafios”. Olhando à capacidade de atuação e ao desempenho das concessionárias privadas, Eduardo Marques acredita que a melhor solução é a criação de condições legislativas que potenciem a participação do setor privado no mercado: “Não se pretendem situações de privilégio: o que se pretende é que o mercado seja livre e concorrencial, sem barreiras ao setor privado como existem atualmente, que consideramos serem contrárias ao direito europeu”.
No combate à escassez de água, o engenheiro considera que a prioridade deve assentar em “melhorar a eficiência dos sistemas públicos”, promovendo a “redução de perdas, antes de novos investimentos”. Aqui, as entidades gestoras privadas conseguiram atingir “níveis de excelência”, “tendo alcançado um volume de água não faturada da ordem de 17%”, enquanto as entidades gestoras públicas, no seu conjunto, têm um “valor médio ponderado da ordem de 31% (só em termos de perdas reais verifica-se um valor de 20.000 m3 por hora). A água poupada daria para abastecer cerca de 1.500.000 de portugueses”, sucinta.
Dos aspetos determinantes dos próximos anos de gestão sob o novo PENSAARP, Eduardo Marques destaca a “sustentabilidade económica de todas as entidades gestoras”, pois, na “maioria das entidades em baixo”, isso não é conseguido “há muitos anos”, tornando-se “uma evidência recorrente. O abastecimento de água em baixa apresenta prejuízos anuais de mais de 90 milhões de euros em cerca de metade dos municípios”, exemplifica. “Melhorar a capacidade de gestão” é também extremamente importante, pois, atualmente, verifica-se um “forte deficit” em muitas entidades, por falta de meios e de conhecimento especializado: “Só será conseguido através da empresarialização”, afinca.
[blockquote style=”1″]Edifícios têm um potencial de redução de 30 a 50% no uso de água[/blockquote]
Com a escassez de água a ser uma realidade, já são alguns os projetos em marcha para colmatar este desafio. O AQUA+ “Água na medida certa” é um bom exemplo. Trata-se de um “instrumento voluntário de avaliação e classificação da eficiência hídrica de edifícios”, desenvolvido pela ADENE (Agência para a Energia), em colaboração com o sistema científico e tecnológico nacional e múltiplas entidades dos setores da água, energia e edifícios, que pretende ajudar a responder ao desafio da sustentabilidade e eficiência da água nas cidades, melhorando a eficiência hídrica de edifícios. Filipa Newton, coordenadora de Novos Sistemas da ADENE, explica que o AQUA+ permite “avaliar a eficiência no uso da água num imóvel”, “emitir uma classificação hídrica numa escala conhecida dos utilizadores, de F a A+” e “identificar medidas de melhoria para a eficiência e circularidade da água”. Como vantagens, este projeto ajuda a “melhorar projetos de construção e reabilitação” para edifícios mais sustentáveis no uso da água e energia. Aos consumidores, “permite comparar a eficiência hídrica entre imóveis e identificar medidas de melhoria, indicando as respetivas poupanças de água e de custos com água e energia”, acrescenta. Uma vez que os edifícios têm um potencial de “redução de 30 a 50% no uso de água”, o AQUA+ vai orientar a “construção e a reabilitação para soluções que permitem reduzir esse consumo”, aproveitando também “fontes alternativas, como águas pluviais e cinzentas”. Além disso, o projeto dá resposta a objetivos de “políticas públicas” para a “transição energética, climática e circular”.
O AQUA+ resulta de um processo participativo e da necessidade identificada pelos stakeholders, havendo já “uma centena de profissionais formados, uma Rede de Compromisso com 30 entidades, múltiplas auditorias realizadas e em curso”. Através deste projeto, já foi possível identificar um “potencial de subida de classe hídrica na maioria dos imóveis auditados, com reduções potenciais de 38% no consumo de água (para condições padrão de uso)”. Em fase de desenvolvimento, está o AQUA+ Hotéis com lançamento previsto para o fim de 2021: “Em 2022, será alargado a edifícios de comércio e serviços, incluindo edifícios públicos”, adianta.
*Este artigo foi publicado na edição 89 da Ambiente Magazine