“Oferecer ao consumidor peixe de qualidade, livre de contaminantes e que foi produzido seguindo as melhores práticas de bem-estar animal e de sustentabilidade” é a grande missão da SEAentia. A startup de aquacultura, fundada em 2017 por João Rito e Nuno Leite, será pioneira no cultivo de corvina (Argyrosomus regius) utilizando um sistema de recirculação em aquacultura – RAS (Recirculating Aquaculture System).
Em entrevista à Ambiente Magazine, Nuno Leite, founding partner da SEAentia, começa por dizer que o lema da startup é a “aquacultura baseada em ciência”, refletindo assim percurso dos fundadores, sendo que o desejo passa por “aplicar todo o conhecimento que reunimos durante vários anos dedicados à investigação científica”. E cumprindo a missão da SEAentia, Nuno Leite não tem dúvidas de que “estamos a contribuir para o desenvolvimento da produção em aquacultura em Portugal” e a “derrubar uma série de mitos e percepções erradas que ainda existem associados à aquacultura”.
Aquele que parece ser o fator “diferenciador” da SEAentia é, precisamente, a “aplicação do sistema de recirculação em aquacultura para o cultivo de corvina até à escala comercial” que, do conhecimento dos fundadores, nunca foi feito em lado nenhum no mundo: “Esta tecnologia é bastante comum nos países nórdicos (Noruega, Dinamarca e Holanda) mas sobretudo aplicada a espécies como o salmão, truta, pregado e enguia”. E o conceito é simples: “Trata-se de um sistema fechado em que a água captada (salgada no nosso caso) passa por uma série de processos de filtração e tratamento por UV antes de chegar aos tanques onde estão os peixes”, refere. Por sua vez, “a água que sai dos tanques cheia de nutrientes e partículas em suspensão, é novamente filtrada e tratada, sendo que diariamente cerca de 95% retorna aos tanques e 5% é descartada, podendo o sistema ser otimizado para taxas de recirculação de 99%”, explica. Na prática, o RAS permite “controlar todos os parâmetros físico-químicos a que os peixes estão expostos e eliminar todas as fontes de contaminação externas”, fornecendo-lhes o “melhor ambiente possível, livre de stress, o que levará a que toda a energia que consomem por via da ração seja direcionada para o crescimento”, adianta. Assim, “conjugamos o melhor bem-estar animal com uma produção mais eficiente, sem necessidade de recorrer a quaisquer antibióticos ou outros químicos e isso vai reflectir-se na qualidade do produto final”, sustenta.
[blockquote style=”2″]Mudança de mentalidade relativamente aos produtos de aquacultura[/blockquote]
Sobre a aquacultura em Portugal, Nuno Leite diz que além da produção ser “manifestamente insuficiente para as necessidades” da sociedade, existe ainda uma “perceção bastante negativa” sobre os produtos originários de aquacultura: “Para termos uma noção, Portugal consome cerca de 568 mil toneladas de pescado para uma produção que ronda as 174 mil toneladas em pescas e 13 mil toneladas em aquacultura, o que significa que temos que importar 381 mil toneladas de pescad2o”. Isto é “económica e ecologicamente insustentável”, alerta, destacando que “a maior fatia da nossa produção provém das pescas e o pescado importado é maioritariamente de aquacultura”.
Quanto à perceção negativa é preciso um “grande trabalho de sensibilização” para os produtos de aquacultura: “Como em qualquer produção animal há boas e más práticas, produções sustentáveis e exageros com consequências ambientais e é crucial diferenciá-las e enaltecer as boas práticas, como aliás já se faz há bastante tempo nas produções de animais terrestres”. E, “quando dizemos a alguém que produzimos corvina em aquacultura ainda temos muitas reações como chamar-lhe peixe de viveiro, mencionar o famoso documentário sobre o salmão (como um excelente mau exemplo) ou dizer que o peixe de mar é que é bom, apesar das cada vez mais evidências de poluição dos oceanos”, refere. Embora haja “imensos maus exemplos de aquaculturas cujo peixe chega aos supermercados sem qualquer diferenciação ou identificação” e o “peixe de mar pode de facto saber melhor que a maioria do peixe produzido em aquacultura”, Nuno Leite afirma que probabilidade de estar “contaminado com microplásticos ou metais pesados” é enorme.
A mudança de mentalidade relativamente aos produtos de aquacultura é talvez um dos maiores desafios da aquacultura no país: “Se exigimos selos de qualidade, sustentabilidade e transparência de produção para quase todos os outros produtos, alimentares ou não, o pescado não tem porque fugir à regra”. Outro desafio está relacionado com o “ordenamento do território” e o “licenciamento de zonas” para a aquacultura: “No nosso caso, o sistema RAS é instalado num pavilhão e apenas necessitamos de estar perto do mar para fazer a captação de água, o que nos facilita muito as operações, mas outros tipos de aquacultura em sistema aberto requerem áreas estuarinas ou na costa que, naturalmente, não podem ser ocupadas aleatoriamente”, explica.
Para sistemas RAS como o da SEAentia, existe ainda o desafio do “preço inicial da tecnologia que é bastante elevado”, diz, destacando ser uma barreira ao nível do investimento. Também a “formação especializada” de quem o opera é um desafio: “Felizmente, temos cada vez mais pessoas formadas e especializadas nas mais diversas vertentes da aquacultura, o que só pode dinamizar e melhorar a indústria”.
[blockquote style=”2″]Todas as áreas têm um papel importante a desempenha[/blockquote]
O facto de a pandemia ter vindo acelerar a necessidade de um modelo económico mais sustentável, Nuno Leite parece não concordar com essa opinião: “Se no início do confinamento houve maior sensibilidade para as questões ambientais isso rapidamente passou para segundo plano com um aumento brutal do consumo de material descartável, que inevitavelmente acaba nos oceanos”. Para o responsável, é notório que a sociedade tem um “excesso de consumo e de atividades extrativas” do meio ambiente, apontando para uma solução que já foi demonstrada nos Açores: “A mudança de mentalidades e sensibilização das partes interessadas da região, onde lhes foi demonstrado que os benefícios económicos de atividades não extractivas (ex: observação de cetáceos, mergulho, pesca desportiva sem captura) eram muito superiores às atividades extractivas como as pescas”. Apesar de ser “difícil” perceber se este exemplo é aplicável fora de um contexto de ilha, Nuno Leite não tem dúvidas da urgência de se “alterar os usos que se dá aos oceanos”, bem como de se “criar um equilíbrio entre aquilo que se extrai e o que se deixa renovar”.
Em matérias de preservação do oceano, o responsável acredita que a biotecnologia é uma área com grande potencial: “Existem hoje múltiplos exemplos de aplicações biotecnológicas que indiretamente contribuem para a preservação dos oceanos, em grande parte por evitarem a contaminação ou a sobreexploração de recursos marinhos”. Os “fotobioreactores de microalgas” que “aumentam a produtividade de compostos nutricionais”, evitando assim a sua procura pela “pesca indiscriminada”; as “embalagens biodegradáveis produzidas a partir de algas que não irão impactar os oceanos” ou o “tratamento de efluentes com recurso a microalgas”, são alguns dos vários exemplos.
“Todas as áreas têm um papel importante a desempenhar” no que à preservação do oceano diz respeito, declara, destacando que já foi “provado” o benefício económico da preservação dos oceanos e da exploração de atividades não extrativas. Por isso, “se os decisores políticos, grandes grupos económicos e as populações que mais usufruem do oceano estiverem ativamente envolvidos esse objetivo será muito mais fácil de alcançar”, defende.
E o futuro?
Temos hoje ao dispor mais informação e tecnologia para fazer face aos problemas do que as gerações anteriores mas não podemos ficar acomodados nem reféns dessas vantagens. Há um trabalho constante de aprendizagem, formação e sensibilização de todas as partes envolvidas em que todos devem ser ouvidos e contribuir para preservar algo que é precioso. Seguindo uma máxima que um professor da faculdade nos ensinou: “devemos ser sempre optimistas mas atentos”.