A Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) lançou “O País que se Segue”, um programa de conversas digitais (aqui) que pretende pensar, em conjunto, o futuro de Portugal e dos portugueses. A convidada de ontem foi a especialista em energia e alterações climáticas, Maria Júlia Seixas, para nos ajudar a compreender como o Covid-19 vai mudar a nossa relação com o Ambiente.
Multiplicam-se as imagens dos canais de Veneza mais limpos que nunca e as notícias de tartarugas em vias de extinção a dar à costa de praias no Brasil ou Índia, tudo graças à redução da atividade humana por culpa do surto de Covid-19. Para Júlia Seixas, isso “mostra aquilo que nós sempre dissemos sobre o impacto das atividades humanas no Planeta” mas, desta vez, pela positiva.
O certo é que quando voltarmos à vida “normal” estas condições ambientais, que agora se verificam, não se vão manter até porque a redução de emissões é “artificial”, na medida em que a transição demora o seu tempo até se tornar estrutural, e “o nosso modelo económico e modo de vida não muda de um momento para o outro”, admite a especialista. No entanto, Júlia Seixas acredita que “estamos a aprender uma maneira de estar que pode ser útil para a extrapolarmos para o dia-a-dia no futuro”.
Por exemplo, no que respeita ao teletrabalho, as pessoas tomam consciência de que “muitas das nossas atividades podem ser feitas sem nos termos de deslocar poucos ou muitos quilómetros” e a verdade é que até os meros movimentos casa-trabalho-casa “exigem um grande consumo de combustíveis fósseis”. Além disso, esta é também uma oportunidade para “refletirmos se o consumo que estávamos habituados a fazer é realmente necessário ou se afinal conseguimos viver sem menos”, sugere a investigadora.
Júlia Seixas considera “muito incerta a forma como iremos retomar a vida normal” e, na sua opinião, quando o País reabrir vamos entrar numa espécie de “modelo híbrido”, ou seja, “com possibilidades de presença em alguns sítios e contextos mas a utilizar muito daquilo que estamos a aprender com atividades à distância e com as plataformas digitais”.
Neste momento de aprendizagem, “o importante é o tempo em que adotamos determinado comportamento”. Se adotarmos um comportamento por uns dias não terá grande efeito mas se “tivermos um comportamento continuado, durante muito tempo, interiorizamos esse comportamento”, explica a especialista. Assim, a adoção de comportamentos amigos do ambiente “depende da vontade de cada um e do entendimento e valor que atribui a estes temas na sua vida pessoal”.
Não se entende um retomar da economia alheio ao ambiente
Embora a ação individual seja importante é também preciso “muita responsabilidade da política pública” para que o sistema mude e Júlia Seixas alerta que “esta emergência económica pode ser respondida tendo em atenção a agenda ambiental”. A investigadora vai mais longe e diz não conseguir conceber que “o retomar desta economia seja completamente alheio a todo o trabalho que foi feito em torno da agenda do Green Deal“. O chamado Pacto Ecológico Europeu tem “uma visão e compromisso bastante ambicioso em termos do que a Europa quer para o futuro da sua economia e dos seus modelos de produção e de consumo”.
Antes do Green Deal, já tinhamos o Acordo de Paris que para Júlia Seixas aborda duas questões “excecionais”: uma visão de futuro e o facto de essa mesma visão considerar “todos os países do Mundo por igual na sua responsabilidade climática”.
Segundo a especialista, um dos caminhos mais “fáceis” para a transição energética — mas que não resolve tudo — é efetivamente aumentar os impostos sobre o carbono e os incentivos ambientais. Júlia Seixas dá o exemplo “paradigmático” do consumo de carvão nas centrais térmicas que se tornou mais caro face ao “aumento do valor das licenças de emissão, 25 euros por tonelada, e à quebra da isenção sobre produtos de energia que o Governo português decidiu fazer”. Neste caso, foi a “ação política” que “inviabilizou o custo-eficácia do carvão para a produção de eletricidade em Portugal”.
Na aviação civil, responsável por 2,5% das emissões globais do Planeta e dentro de 10 anos a expetativa é que esse valor triplique, a especialista afirma ainda não existir alternativas “limpas” e julga “impensável continuarmos com as viagens de avião sem aplicar um único imposto que seja”. “Não faz sentido continuarmos a usufruir deste serviço, de utilização da atmosfera, sem pagarmos e sem regularmos o impacto que esta atividade tem”, acrescenta.
Em suma, Júlia Seixas “gostar de perceber que esta oportunidade que vamos ter agora para a retoma económica fosse feita com um impacto substancial na redução de gases com efeito de estufa”.
O petróleo é “artificialmente barato”
O preço do barril de petróleo atinge valores mínimos históricos, pela sua baixa utilização nesta altura, mas a investigadora deixa claro que o petróleo é “artificialmente barato” pois quando é utilizado em países que taxam o carbono o seu valor aumenta. Independentemente do preço do petróleo, sabemos que “há impactos positivos das energias renováveis que não se prendem apenas com o custo nivelado da energia”. Se seguirmos um modelo de produção assente em recursos endógenos, deixamos de ter uma “economia sujeita à volatilidade do preço dos combustíveis fósseis”.
Além disso, o investimento nas renováveis proporciona um “valor de emprego que os fósseis por norma não valorizam” e “estamos a reduzir a poluição do ar, a preservar os ciclos naturais do Planeta e com tudo o que isso está associado, nomeadamente, no que diz respeito às alterações climáticas”, esclarece Júlia Seixas. Assim, sabendo a origem dos problemas ambientais e a relação direta entre alterações climáticas e o consumo de combustíveis fósseis, “penso que o preço do barril do petróleo deve ser tudo menos o critério para estar a definir políticas de futuro relativamente ao uso da energia”, conclui.
O País que se segue mais sustentável
Numa altura de pandemia parece reconhecer-se, mais, a importância da Ciência em todos os aspetos. Confrontada com esta questão, Júlia Seixas considera ser “um pouco dececionante, em pleno séc. XXI, pensarmos que devemos reconhecer a Ciência apenas em situações de vida ou morte” e que “seria mais inteligente começarmos a respeitar e a acreditar nos cientistas antes disso”.
A especialista em alterações climáticas comenta ainda que: “O facto de vivermos cada vez mais em ambientes urbanos, rodeados de tecnologias, dá-nos a falsa segurança de que somos uma espécie de domina a Natureza. Mas estamos dependentes dos humores da Natureza.” E esses “humores” dependem muito da ação humana e sabemos disso. “Fingir que não é nada connosco, isso sim é grave”, argumenta.
Júlia Seixas espera que “O País que se Segue” seja mais sustentável e não apenas do ponto de vista ambiental mas também seja capaz de produzir “menos desigualdades”.