Dez anos após o início da coincineração na cimenteira de Souselas, em Coimbra, os protagonistas da luta contra a queima de resíduos industriais perigosos e os responsáveis fabris coincidem na opinião sobre as melhorias ambientais registadas, assinala a Lusa.
Em fevereiro de 2008, a cimenteira da Cimpor, localizada em Souselas, cerca de cinco quilómetros a norte de Coimbra, iniciou o processo de queima de resíduos industriais perigosos, com base numa legislação criada dez anos antes pelo governo socialista de António Guterres, dando início a uma contestação popular que nos dias de hoje desapareceu, mas cuja luta se mantém em tribunal. “Este processo foi, no meu entendimento, um processo cheio de sucesso, para quem estava contra a coincineração, porque a coincineração que temos agora é uma fração pequenina daquilo que se pretendia na altura coincinerar”, disse à agência Lusa João Gabriel Silva, reitor da Universidade de Coimbra e antigo dirigente da Quercus.
João Gabriel Silva, que foi um dos rostos da luta contra a queima de resíduos industriais perigosos em Souselas, lembrou que a posição que defendia na altura e que mantém era a de que havendo para alguns daqueles tipos de resíduos “alternativas técnicas ambientalmente melhores e que fossem economicamente viáveis”, essas alternativas deviam ser escolhidas, “em vez de meter tudo misturado, sem grande critério, nas cimenteiras”. “Ora, isso acabou por ser, em larga medida, exatamente o que aconteceu”, alega o antigo dirigente ambientalista.
O biólogo João Pardal, ex-vereador da autarquia de Coimbra e antigo presidente da junta de freguesia de Souselas, nota, por seu turno, o aparecimento de um quadro legislativo na sequência da coincineração que veio impor práticas ambientais “mais adequadas” ao tratamento de resíduos e que, em Souselas, “obrigou a um conjunto de medidas de proteção ambiental na cimenteira [da Cimpor] que, por sua vez, levaram a melhorias do ambiente local”. A título de exemplo e embora assumindo que não há estudos que o comprovem, João Pardal aponta uma “relação de causa/efeito” nas oliveiras plantadas em terrenos situados em redor da unidade fabril de produção de cimento: “Durante anos, as oliveiras não davam azeite, porque não havia azeitona, pura e simplesmente a flor caía, não havia a produção do fruto para fazer o azeite. E, desde que foram implementadas algumas medidas de proteção ambiental, passou a haver azeitona e passou a haver azeite”, destacou.
O biólogo argumenta, no entanto, que a “parte mais negativa” das decisões sobre a queima de resíduos industriais perigosos e que levou à revolta das populações “foi sempre o tabu que se fez em volta do processo de coincineração”. “Em determinados momentos, parecia que era segredo de Estado, na prática houve momentos em que houve claramente uma falta de transparência do próprio processo. E quando não há transparência, cria receios na população”, argumenta João Pardal.
Do lado da unidade fabril, Sandro Conceição, responsável de coprocessamento do grupo Intercement/Cimpor, explica que os resíduos queimados num dos três fornos da cimenteira de Souselas representam anualmente “três ou quatro por cento” do combustível necessário para a produção de cimento. Os resíduos que a Cimpor recebe incluem plásticos e cartão, tintas e óleos usados “que já não podem ser reciclados”, diz Sandro Conceição, lembrando que, previamente à sua utilização pela cimenteira, existe um processo de reciclagem, nomeadamente nos Centros Integrados de Recuperação, Valorização e Eliminação de Resíduos Perigosos (CIRVER).
Os resíduos são descarregados num sistema “autónomo e isolado” nas instalações fabris, de onde são direcionados ao forno, sem que haja cheiros para o exterior ou contacto com os trabalhadores da fábrica, conforme constatou a agência Lusa na visita que efetuou às instalações da Cimpor em Souselas. “Este processo, logicamente, cumpre todo um conjunto de requisitos que têm de ser cumpridos, nomeadamente o controlo das emissões, o controlo do processo operacional, segurança e qualidade, e só quando essas condições são todas garantidas é que nós conseguimos então fazer a injeção desses combustíveis e utilizá-los, valorizando-os, substituindo nessa altura os combustíveis fosseis utilizados normalmente no forno”, declarou Sandro Conceição.
Já Susana Coimbra, diretora fabril da Cimpor/Souselas, destaca a ligação da unidade industrial à comunidade, frisando que todos os anos “várias centenas de pessoas” visitam as instalações “para que possam, da forma mais transparente e objetiva possível, ver como se produz cimento, como é que se coprocessa [resíduos] e como é que todos esses controlos são efetivamente feitos”. “Ao longo dos anos foram instalados vários dispositivos de minimização das nossas emissões, de forma que o nosso impacto na população fosse reduzido. O que se via há 20 anos quando se passava aqui perto da fábrica é substancialmente diferente do que se vê hoje”, argumentou Susana Coimbra.
Apesar da melhoria ambiental, subsistem algumas questões relacionadas com a saúde das populações, nomeadamente a ausência de uma comissão de acompanhamento, que chegou a ser anunciada mas que não foi criada, lembra Massano Cardoso, médico especialista em Saúde Pública e outro dos rostos da luta contra a coincineração. “Como os estudos que na altura foram realizados provaram um défice de saúde bastante acentuado, fiquei muito surpreendido pelo facto de não haver a tal comissão de acompanhamento que foi prometida politicamente.
Também fico muito admirado por não se saber quais são os resultados do controle dos poluentes nesta zona, sobretudo em Souselas. Não vejo ninguém a publicá-los, não vejo nada. Há aqui uma espécie de adormecimento ou de um deixar andar que, realmente, me causa uma certa estranheza”, disse Massano Cardoso.
A luta contra o processo de coincineração em Souselas subsiste nos tribunais administrativos há 11 anos, promovida pelo Grupo de Cidadãos de Coimbra, e “aproxima-se agora do fim”, sustenta o advogado Castanheira Barros, porta-voz do movimento cívico. O advogado admite que é “um bom prenúncio” a admissão de um recurso excecional pelo Supremo Tribunal Administrativo, que ainda o irá julgar, embora até aqui tenha sempre bloqueado as pretensões dos contestatários e Castanheira Barros argumente que daquela última instância judicial espera “sempre o pior”.
“Se de facto perderemos a ação, nós iremos apresentar uma queixa contra o Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Mas espero que isso não aconteça, espero que impere finalmente o bom senso no Supremo Tribunal Administrativo”, frisou.